"Todos somos de algum modo testemunhas, mais do que espectadores"
Sete bailarinos com a guerra no corpo, ténis em vez de stilettos, fatos de treino carregados de pó em vez de camisas de seda, pedras em vez de penas. Sete pessoas num apartamento semidestruído, um abrigo no meio do inferno, um lugar com nome e geografia: é a Síria, é Aleppo, e Olga Roriz faz questão que saibamos disso. Antes que matem os elefantes começa a negro, com as vozes dos que vivem - viveram? - essa realidade limite que o palco convoca.
É desse lugar que, na plateia, partimos, como antes de nós partiu a coreógrafa. "Aquela realidade existe, aquela gente existe. Eu preparei-me assim para este espetáculo, a vê-los e a ouvi-los, e senti que o público precisava de se preparar também. Precisava de saber que não havia dúvidas sobre o que se ia passar a seguir". Vozes - mas não rostos - de crianças de Aleppo, protagonistas e testemunhas de uma catástrofe contada nos muitos documentários vistos no arranque do trabalho, chamada à terra e declaração de intenções: "Todos somos de alguma maneira testemunhas, algo mais do que espectadores. Há aqui uma postura reivindi- cativa, de ação social e política, relativamente àquilo que se está a passar". Que já se passava quando Roriz quis trabalhar artisticamente a questão dos refugiados, que se continuou a passar quando a coreógrafa afinou o olhar para a origem do drama, que se continua a passar agora que Antes que matem os elefantes chega ao palco do Teatro Camões - a guerra na Síria.
A clareza do contexto e da vontade da criadora não se reflete apenas de fora para dentro, funcionou primeiro no interior da peça, empurrando o trabalho para um lugar comum de criação. "Foi a primeira vez que falei de política dura com os meus bailarinos", sublinha Olga. "Estávamos todos muito conscientes do que estávamos a fazer e do porquê de o fazermos. Houve um uníssono mental e coreográfico muito forte logo no início, mesmo antes de começarmos as improvisações individuais". Depois, quando cada bailarino trouxe para a cena o seu "momento verdadeiro", a situação que traduzia um pensamento, uma atitude, uma convicção em relação ao tema da peça, Roriz colecionou esses momentos, editou-os, criou com eles uma partitura que, em vez de fragmentos, tem uma história para contar: a de sete pessoas numa casa semidestruída em Aleppo, onde as bombas continuam a cair. "Na minha cabeça é um abrigo e todo o conflito se passa no exterior, é de lá que vem o perigo. Mas também pode ser uma esquina de rua, o Bruno Alves acha que sim e foi ele que trouxe a violência do exterior".
Violência autoinfligida - há um monte de pedras que o bailarino despeja sobre si próprio, num dos momentos mais tensos da peça - que entre eles não existe tumulto, só quatro homens e três mulheres que esconjuram a enormidade da guerra com rituais de proteção e cumplicidade. Na narrativa que foi desenhando, a coreógrafa escreveu personagens com a matéria que os bailarinos lhe foram trazendo: André de Campos é "aquele que carrega os corpos, o que inicia os rituais, o que lava os cabelos das mulheres", Carla Ribeiro "faz o trabalho da memória, tem uma relação fraternal com os outros", Bruno Alexandre é "a sombra, o fantasma, a alma", Francisco Rolo "o menino, protegido pelos outros", Marta Lobato Faria "a que se enerva, a que explode, a que tem de ser acalmada", e Beatriz Dias aquela que "não quer ir para onde os outros vão, por medo ou convicção".
Esboços para uma realidade que se aprofunda em palco, que se constrói com meia dúzia de cobertores, um frigorifico e um sofá, nos antípodas de, por exemplo, Propriedade Privada, outra peça sobre o horror, construída sobre as imagens do Holocausto que o cinema fixou, trabalho de 1996 reposto o ano passado no programa de celebração dos vinte anos da Companhia Olga Roriz. Em Antes que matem os elefantes, toda a cena (imaginada por Roriz e Paulo Reis, que também coassinam a dramaturgia) está coberta de pó, tudo se desmorona, até a teia de iluminação parece ruir sobre o palco. A matéria espessa de que são feitas as criações da coreógrafa, essa amálgama de desejos, testemunhos e gestos que na cena se materializa em terra, penugem ou pó - "um ar sem espessura não me diz nada", afirma ela - assume aqui uma sujidade que contrasta com o límpido desenho de luz (de Cristina Piedade), espécie de harmonia no pesadelo.
Estamos ali - com "aqueles que caminham, em manada, para a morte" - e não estamos ali, percebemos. Como na cena em que os bailarinos se sentam no sofá e imitam, como miúdos, os ruídos da guerra. "Este espetáculo não é dúbio mas é ambíguo", reflete Roriz, revelando o que aí vem: uma nova peça, mais direta, mais esperançosa. "Eventualmente estes homens e mulheres serão aqueles que vão reconstruir a cidade. Não sei, mas sei que o próximo espetáculo vai começar no sítio em que este acabou". Não é só a vontade de trabalhar o tema mas o próprio modo de construção, que continuam.
"Agrada-me esta linguagem, esta construção por camadas, este lugar e estas pessoas muito precisos, é uma matéria intelectual e física muito palpável que me faz querer continuar a fazer espetáculos. Estas paisagens e estas ações são muito teatrais". Uma espécie de despojamento que não retira, mas confere, espessura. Como a ausência da palavra - dita ao ouvido, aqui - ou o corte súbito da música, como uma bomba que caí de repente. Uma coisa não fragmentada, continuada, furiosamente coreografada. "Apesar da força reivindicativa da narrativa, tudo aqui é escrito pelo corpo, pela ação".