"Todos podíamos ser Dido, todos podíamos ser Eneias"
Podia acontecer a qualquer um. Esqueça-se que Dido era rainha de Cartago e Eneias um guerreiro troiano. A história todos conhecem, e quem não ouviu a ópera do inglês Henry Purcell, Dido e Eneias, já terá pelo menos escutado a sua ária final, o lamento de Dido: When I am laid in earth. Até Jeff Buckley a cantou.
A dupla de coreógrafos São Castro e António Cabrita leva agora essa obra do barroco inglês para os corpos de 24 bailarinos da Companhia Nacional de Bailado (CNB). Ao espectador que a partir de hoje assistir a Dido e Eneias no Teatro Camões, em Lisboa, um aviso: que se prepare para uma espécie de eletricidade que esses bailarinos, sempre todos em palco, transmitem em permanência, como a respiração de um grande animal. Desse grupo sai Dido, e sai Eneias. Mas é em Dido que tudo começa. Ainda o espectador se está a sentar e já ela caminha sobre o palco E se o faz é porque Gonçalo M Tavares, o escritor que deu apoio à dramaturgia neste bailado, lembrou aos dois coreógrafos que era "importante estabelecer logo no inicio que a Dido está, o Eneias chega. Ela quase que estabelece ali o seu próprio território: "Eu sou daqui, estou aqui", conta São, que com António dirige a Companhia Paulo Ribeiro desde que o coreógrafo saiu para a direção artística da CNB, em novembro último.
Eneias (Lourenço Ferreira) aparece na terra e na vida de Dido (Henriett Ventura). Ela, mulher de Estado, apesar do medo que lhe traz o amor e sua consequente perda de controlo, casa com Eneias, na esperança de levar a paz a Cartago. Apaixonam-se. Pelas mãos de bruxas e de um elfo (no bailado é um feiticeiro: Miguel Ramalho), que aparece a Eneias mascarado do deus Júpiter dizendo-lhe que parta para fundar uma nova Tróia, ele hesita em partir ou ficar. Dido não lhe perdoa a hesitação, ordena-lhe que parta, e escolhe a morte como destino. É então que canta para Belinda, a sua aia: "Lembra-te de mim, mas esquece o meu destino."
No foyer do Teatro Camões, São Castro e António Cabrita, começam por falar da tensão causada pela permanente presença de todo o grupo em palco. Definiram-no ao início como conceito. Depois viria todo aquele tempo em que escutaram a ópera um sem número de vezes para deixar que depois o corpo a traduzisse: o que é diferente de a ilustrar. E, por último, depois de criarem o movimento nos seus corpos, como sempre fazem, chegou o trabalho de quase dois meses com os bailarinos. "Nós queríamos construir uma tensão entre o grupo: estarem muito perto e terem de se movimentar não é fácil. É como uma respiração deles em conjunto. Aqui, como já temos a palavra presente, e ela é forte, quisemos ter o corpo presente como uma continuação, um prolongamento. Mais do que o que significa a palavra, é o que está dentro daquele momento: um conteúdo emocional que fizesse sentido naqueles corpos. É um grupo que trabalha energeticamente os personagens principais, para que de repente eles surjam do grupo. E voltam ao grupo. No fundo, todos ali podiam ser Dido, Eneias, o feiticeiro. Como se o grupo expulsasse uma energia para depois voltar a recolhê-la", explica a coreógrafa.
António continua o raciocínio. "Eu acho que tem que ver com a sociedade de hoje em dia. Todos poderíamos ser Dido, todos podíamos ser Eneias, nas várias relações humanas, sociais, emocionais, até profissionais, que criamos. Estes personagens principais saem do grupo, mas são personagens principais porque o grupo as fazem principais, e as manipulam, constroem, e destroem. E isso é uma coisa muito recorrente hoje. Quem é que gere tudo isto?", pergunta.
Ao contrário do que acontece na ópera, em que a voz de Eneias é forte e a de Dido é frágil, aqui acontece o oposto. "Para nós, a Dido é uma mulher que se caracteriza muito pela forma como hoje as mulheres são vistas: tem a sua fragilidade, feminina, mas tem uma força dentro dela que a caracteriza. No final o Eneias até diz: "Eu fico, estou apaixonado por ti." E ela não lhe perdoa essa hesitação. Diz: "Não, mas agora sou eu que não quero que fiques. Vai embora." É ela que o manda embora", lembra São.
Desde o início, explica António, os dois acharam que Eneias "devia ser um personagem mais frágil, mais deslocado: quando aparece, ele é um outsider." E é assim que se vai embora. Novamente solitário, de braços erguidos, pendurado - com "toda aquela virilidade que lhe é imposta: tem de estar ali, segurar-se, tentar manter-se". Ainda que não exista na ópera, que termina com o lamento de Dido, São Castro e António Cabrita criaram um lamento de Eneias. É a única vez em que o grupo parece não estar lá, embora esteja. Eneias pendurado parece destruir, a cada balanço, o cenário em que embate. O som é de destruição, futura ruína. E enquanto o vemos assim, já Dido se despediu, depois de se ter dado à morte, com todo o grupo colado a ela: como um monumento vivo à sua memória. "Aquele momento final é como se fosse uma caminhada dela de encontro a qualquer coisa que para mim não é o final. É quase como uma tentativa da própria terra de a perseguir, e de a cobrir, mas há uma resistência da parte dela. Também não vejo a Dido a deixar-se ir", diz São.