1. É cada vez mais difícil distinguir se estamos perante ficções que se aproximam dos seres humanos ou se são já os seres humanos que representam personagens de guião. É assim no Brexit, na banca, no grande mundo dos negócios mas também na pequena vida das empresas, nas relações pessoais, na vontade brusca de romper com tudo e mudar de vida..O Brexit é o melhor exemplo de como a mentira reina. E destrói. E impunemente faz a História..Encostados à parede, os outros países europeus nem podem abrir a boca. Mas se abrem, ainda é pior: Macron, para ganhar pontos internos, quer expulsar os ingleses rapidamente, numa tontice francesa que desmerece as normalmente sensatas intenções do Presidente francês..A senhora May, que tanto minou Cameron e o "Remain" no Partido Conservador, faz de conta que é uma vítima. Como cumprir as expectativas dos ingleses se todos foram enganados por Farage e Boris Johnson?.Jeremy Corbyn é outro achado ficcional: não sabe que uma política europeia seria a única maneira de salvar a sua "esquerda", incluindo os seus desempregados da globalização..Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu, está para a realidade como Mário Draghi esteve para a crise da zona euro: é neste momento um dos salvadores da Europa. Quem viu a série da BBC sobre a Crise da Europa que a SIC Notícias transmitiu há poucas semanas, ficou a perceber melhor como o polaco tem sido de uma enorme lucidez nos bastidores..Nem em ficção se conseguiria escrever uma saga tão infindável quanto o Brexit. Seria chumbada por irrealidade e repetição de cenas..2. Continuemos na distopia. Veja-se a América de Trump e a lógica dos reality shows..Trump treinou-se no The Apprentice durante muitos anos. O seu poder era arbitrário e "fake" enquanto competência como empresário..As consequências das suas ações eram tão reais quanto a televisão o é..Mas Trump sabe o que "funciona" nos media. Fez toda uma campanha para presidente a dizer o que as pessoas queriam ouvir - tal como quase todos os políticos. Só que, quando chegou à Casa Branca, não fez o que é habitual. Trump não caiu na realidade. Mantém a construção de uma realidade imaginária e criou uma equipa de ideólogos e máquinas de média que constroem confirmações do que pretende a partir de pequenos pedaços de verdade..Exemplo: não há uma caravana de milhões de pessoas a caminho da fronteira México-Califórnia. Mas há algumas centenas de pessoas (talvez alguns milhares) na estrada. Logo, são milhões - de criminosos. E a Fox confirma isso com imagens-fragmentos. Quem nega esta realidade, está a "mentir", diz Trump, que sentencia o que vemos através do Twitter. E as pessoas já não confiam do que elas próprias vêem..A grande conquista das "Milícias Trump" é a de colocar a verdade e a mentira lado a lado. E as pessoas que desempatem, arriscando-se a ficar com 50% de mentira como boa, o que é um tremendo ganho (ex: ok, não são milhões, mas há uma invasão de milhares de criminosos nas fronteiras...)..A maioria da América está a adorar. "American dream" é exatamente a expressão certa. E não querem acordar, exceto quando já o país (ou o planeta) estiver literalmente a arder. O populismo é tão isto: ficcionar a realidade e fraturar a sociedade através de clivagens sociais, na lógica do "nós" versus os "inimigos"..3. Igualmente grave (nesta alucinação coletiva) é a dependência pelos jogos eletrónicos profundamente agressivos. Não pode deixar de surpreender que seja o Princípe Harry, nos seus 25 anos, a vir dizer que o jogo Fortnite - o maior sucesso mundial em "gaming" - devia ser pura e simplesmente banido do Reino Unido. Estamos a falar de alguém que, provavelmente, foi atingido pela obsessão do jogo e conseguiu desintoxicar-se/sobreviver ainda com lucidez..A sua posição face ao Fortnite é tão radical que parece inacreditável haver tão pouco debate público sobre quais as suas consequências na saúde mental de tantos milhões de jogadores em todo o mundo..Quase todos somos a favor da liberdade individual e da possibilidade de escolha. Mas é absolutamente anacrónico vigiarmos com a lupa do educacionalmente correto as pequenas gralhas e contradições dos manuais escolares, ou existir um enorme poder de censura (compreensível) sobre a televisão, e deixar completamente por regular o que são conteúdos acessíveis a determinadas faixas etárias no "gaming"..É verdade que ainda não temos uma praga de crime baseada na alucinação entre realidade/mundo virtual. Mas há uma sensação de ruído: avalanche em movimento. E é sobre isso que Harry está a falar..Não se lhe conhece nenhuma posição política ultraconservadora ou qualquer credo proibicionista. Pelo contrário, é uma personalidade pública - daquela geração de jogadores - que conhece o que se passa do lado de lá e está a lançar o alerta. Até porque os decisores "tradicionais" e os media não estão (ou não lhes interessa) perceber as consequências do que aí vem. Na verdade, alguém sabe como atuar?.Steven Spielberg (sempre ele), no filme Ready Player One, tentou dar um cheirinho, meio a brincar, sobre este novo cosmos. Hollywood também já anda a profetizar esse caos em muitos outros filmes. A ficção/reality/gaming imita a vida mas a vida está a copiar estes modelos como se não houvesse impossíveis, mesmo que auto-destrutivos..É um mundo novo. A velocidade da nossa existência passou a ser milhões de vezes mais rápida em conhecimento, obsolescência e dispersão. Não fazemos a mínima ideia onde isto nos vai levar. Segurem-se.