Todos os caminhos da justiça vão dar a Lviv
Lviv, ou Leópolis, já foi polaca, austríaca, austro-húngara, novamente polaca, russa, ucraniana ocidental, alemã, soviética e, desde a queda do muro de Berlim, ucraniana. Quis o destino que nessa cidade, quase tão velha como Portugal, dois jovens, o austro-húngaro Lauterpacht e o bielorrusso Lemkin, frequentassem, em momentos diferentes, a mesma universidade.
Foram ambos pupilos de um professor de Direito chamado Makarewicz, durante a Grande Guerra e nos anos que se lhe seguiram. Tal facto é absolutamente extraordinário porque Lauterpacht, cujo nome batiza o Centro para o Direito Internacional da Universidade de Cambridge, é o pai da formulação "crimes contra a humanidade". E Lemkin é o criador do neologismo "genocídio". Para tal coincidência cósmica não terá sido alheio tudo o que consabidamente ouviram de Makarewicz sobre os massacres dos arménios pelo império otomano, um dos crimes mais hediondos e menos conhecidos da história.
Como se tal confluência não fosse suficientemente surpreendente, a mística em torno de Lviv torna-se incontornável com mais dois momentos. Em 1944, a verdadeira desnazificação da cidade, levada a cabo pelos soviéticos, liberta, entre centenas, o famoso Simon Wiesenthal que dedicou a sua vida a trazer inúmeros fugitivos nazis ao banco dos réus da justiça. E, um ano depois, um filho de Lviv, Louis Sohn, participa na conferência de São Francisco, fundadora das Nações Unidas, tendo sido um dos redatores do estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, agora com sede na Haia.
Este alinhamento das estrelas confere a Lviv um estatuto quase divino - pelo menos para as mentes jurídicas. Esta cidade das "fronteiras indefinidas", como lhe chamou Joseph Roth, viu germinar nas suas ruas de sofrimento e em tertúlias académicas o brilhantismo intelectual que nos ofereceu a dignidade de criminalizar a nossa inveterada e milenar bestialidade perante o estranho. Ruas por onde passaram milhares de vítimas a caminho do campo vizinho de trabalho forçado nazi, em Janowska. Ou que desaguaram na sua cidadela onde centenas de prisioneiros de guerra soviéticos foram guardados em condições sub-humanas. E sem esquecer o meio milhão de judeus que terá passado pela estação de Klepariv a caminho da morte.
Apesar desse sofrimento, que parece ressuscitar, esta "nossa" cidade tornou-se uma fonte da resposta mais civilizada do que alguma vez demos à barbárie - a resposta da justiça. O direito, as normas, os nossos consensos humanitários e emancipados das contingências históricas, parecem estar indelevelmente ligados a Lviv. Foi ali, na confluência de identidades, religiões e grandes poderes, que alguns dos nossos melhores compreenderam, de uma forma inédita e revolucionária, a nossa manta comum de humanidade.
Nestes dias, Lviv está expectante e com o medo à porta. É uma luz de esperança para milhões de refugiados. É a retaguarda imprescindível para os que, nas trincheiras da frente desta guerra inaceitável, lutam contra o mais espúrio e injustificado ataque ao direito internacional - a última barreira de prevenção do sofrimento de tantos.
Defender Lviv de um possível ataque é uma obrigação profundamente moral. Tratar-se-á de defender a alma da humanidade, o melhor que alcançámos enquanto comunidades, o sublime estado de paz em que superamos a condição humana.
Peço, por todas estas razões, que os ministros da Justiça do Conselho da Europa se mobilizem na proteção da cidade. Seja reunindo lá. Seja promovendo a convocação da Comissão de Direito Internacional da ONU, para que reúna na fascinante Casa dos Cientistas. Seja com diligências para a instalação imediata em Lviv, parcial ou temporária, do Tribunal Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional.
Continuemos a resistir a tudo o que ponha em causa uma ordem internacional baseada no respeito pelos direitos humanos e pelo Estado de direito, a nível nacional e internacional. Abraçar Lviv é levantar mais uma barreira dos justos contra a barbárie dos realistas e dos cínicos que só conseguem olhar para o mundo através das lentes primitivas do poder pelo poder, ignorando o drama humano.
Colunista