Todas as ameaças do mundo pairam sobre os Jogos do Rio

Em estado de calamidade económica, com escândalos de corrupção transversais, políticos a prazo, os atrasos do costume, células terroristas e mosquitos no céu, cariocas rezam para dar tudo certo
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Se no final der tudo certo, é porque Deus é mesmo brasileiro", afirmava a poucos dias do início dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro um vendedor de cocos na tradicional calçada portuguesa de Copacabana, com o lindo e azulíssimo Oceano Atlântico como pano de fundo. Com o país mergulhado numa crise financeira, o Rio em estado oficial de calamidade, a Operação Lava-Jato a chegar aos calcanhares das obras dos Jogos, um presidente e um governador interinos, apartamentos da Vila Olímpica sem luz e com autoclismos avariados, os primeiros terroristas islâmicos "made in Brazil" a surgirem do nada e o mosquito da zika, dengue e chikungunya a sobrevoar, só mesmo rezando.

"Resta apenas torcer para que não tenhamos mais motivos para nos envergonhar", resume Juca Kouri, decano jornalismo desportivo do jornal Folha de S. Paulo e do canal ESPN Brasil que em artigo chama o comité organizador de "os desorganizadores dos Jogos" e culpa "parte da imprensa ocupada a ocultar ou minimizar as barbaridades, com gracinhas ou mentiras".

O principal problema dos Jogos do Rio é o Rio. Em estado de calamidade pública desde há meses, por iniciativa do seu governo, o estado do Rio de Janeiro apresentou ao longo de 2016 salários em atraso de 500 mil funcionários públicos, 137 mil reformados sem receber metade ou um terço das suas pensões e 30 categorias profissionais em greve.

Na educação, registaram-se 40 ocupações de escolas por estudantes por causa de problemas de manutenção, transporte e alimentação.

Na saúde, o Hospital Getúlio Vargas chegou a fechar as emergências, o Hospital da Mulher paralisou, o Hospital Adão Pereira Nunes, na cidade de Duque de Caxias, e o Hospital São Francisco, na Tijuca, só atenderam casos graves, o Instituto Médico Legal, por falta de funcionários, não recebeu cadáveres e o Hemo-Rio, banco de sangue, suspendeu as recolhas. No total, 24 unidades de saúde foram, ou continuam a ser, afetadas pela crise.

No Hospital Souza Viana, no centro da cidade, um doente foi morto e um enfermeiro e um polícia ficaram feridos durante o resgate de um dos principais líderes do tráfico carioca - Nicolas Jesus, o "Fat Family" - pelo seu gangue, armado de metralhadoras e espingardas. Apesar da polícia tratar a recaptura do foragido, que havia sido levado da prisão ao hospital para uma cirurgia, como "uma questão de honra", de ter destacado 27 batalhões para o efeito, de ter vasculhado 50 favelas, de ter detido 150 eventuais cúmplices e de ter morto nove deles em tiroteios, "Fat Family" continua a monte - e vai continuar enquanto decorrem as provas olímpicas.

A polícia queixou-se de não ter podido usar helicópteros na operação, por falta de dinheiro. Mas mesmo as operações terrestres têm sido afetadas nos últimos tempos: a esquadra do Leblon tem sobrevivido com dois agentes de manhã, ao contrário dos habituais 10. Para poupar combustível, perseguições a criminosos deixaram de ser executadas. Para poupar papel, queixas deixaram de se recebidas. "Welcome to Hell (bem vindos ao Inferno)", dizia uma faixa estendida por polícias na direção de quem desembarcasse no Aeroporto Internacional do Rio, no Galeão, no mês passado.

Na segurança, além do tráfico, crime carioca tradicional, o país enfrenta novos desafios, como o do terrorismo. Há duas semanas foram detidos 10 suspeitos, espalhados por igual número de estados do país, depois de interceptadas conversas em redes sociais sobre compra de armas, festejos pelos atentados de Nice e de Miami e juramentos de fidelidade ao Estado Islâmico.

"O que nós vimos, tanto no grupo whatsapp, como no grupo telegram, foi uma ação aparentemente amadora mas que passou a linha de giz do que nós não permitimos, ou seja, o preparativo de um ato terrorista é crime", sublinhou Raul Jungmann, ministro da Defesa do governo interino liderado por Michel Temer, do PMDB.

A instabilidade política

Sim, o governo do Brasil, por força do processo de impeachment que deve destituir Dilma Rousseff (PT) é interino. E o governo do Rio, liderado por Francisco Dornelles (PP) em substituição do convalescente Luiz Fernando Pezão (PMDB), também. Eduardo Paes (PMDB), o prefeito, está a meses do fim do mandato em trânsito não se sabe para onde [ver texto ao lado]. E a pasta do desporto, que tutela os Jogos, teve, só em 2016, três nomes, uma média de um ministro a cada dois meses e 10 dias.

Os nomes do parágrafo acima - Temer, Dornelles, Pezão e Paes - já foram citados - para já, apenas isso - por delatores da Operação Lava-Jato. E como as construtoras que ergueram as estruturas dos Jogos Olímpicos são, na maioria dos casos, as mesmas que fraudaram a Petrobrás, a sombra do juiz que conduz o caso, Sérgio Moro, também paira, ameaçadora, sobre o Rio. Eduardo Cunha (PMDB), ex-presidente da Câmara dos Deputados e um dos réus da Lava-Jato, é suspeito de ter recebido indevidamente 52 milhões de reais [perto de 15 milhões de euros] das obras do Porto Maravilha, ligadas aos Jogos.

Segundo balanço recente de especialistas, não havia obras com atrasos preocupantes, a não ser as do Velódromo e do Estádio da Lagoa, mas no dia em que as delegações estrangeiras pisaram pela primeira vez a Vila Olímpica, considerada a menina dos olhos da organização, queixaram-se de fios elétricos à vista, inflitrações, pó e entulho nos quartos. "Não tem condições", disse Kiity Chiller, chefe da comitiva mais indignada, a australiana.

Uma Baía de poluição

E depois há a Baía da Guanabara, com tanto de bela como de poluída. Mesmo considerada inavegável por atletas com larga experiência olímpica como Nick Dempsey, windsurfista britânico, que se queixou de nunca ter visto "água tão suja como esta", as autoridades relativizam. "[Os velejadores] pela honra de navegar sob os olhos do Cristo, de braços abertos sobre a Guanabara, aceitam conviver com águas que poderiam estar mais limpas", disse nos jornais o diretor de comunicação do evento Mário Andrada. O ex-governador Pezão chegou a congratular-se por "a Baía, lá para 2017, já estar impecável", ou seja, um ano após os Jogos.

Por sua vez, inaugurada em Janeiro como infraestrutura paralela ao evento, a Ciclovia Tim Maia desabou parcialmente três meses depois, causando duas mortes.

E sobre estes problemas ainda voam mosquitos aedes aegypti, responsáveis pela dengue, chikungunya e zika, epidemias que vêm preocupando os brasileiros e alarmando os estrangeiros. Um grupo de 150 cientistas chegou a sugerir o adiamento dos Jogos à Organização Mundial de Saúde, que, no entanto, afirmou em comunicado na semana passada que "o risco de infeção é baixo desde que tomadas medidas adequadas", mas desaconselhou a viagem a grávidas ou a mulheres que planeam gravidez. Neste cenário, aos vendedores de coco de Copacabana resta ir rezando de frente para o lindo e e azulíssimo Oceano Atlântico.

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