"Toda a gente me dizia que pedir trabalho à Zaha Hadid era uma perda de tempo"

A arquiteta portuguesa Cristina Veríssimo trabalhou de perto com Zaha Hadid, nos anos 80, e estava lá quando a iraquiana construiu o seu primeiro edifício, a estação de bombeiros Vitra, na Alemanha. Relembra a personalidade forte, as lições e as ameaças, durante a Guerra do Golfo.
Publicado a
Atualizado a

"Toda a gente me dizia que pedir trabalho à Zaha Hadid era uma perda de tempo", começa por por contar a arquiteta portuguesa Cristina Veríssimo, atualmente no Canadá, sobre o modo como chegou até à arquitetura, que ontem morreu, aos 65 anos, em Miami, vítima de ataque cardíaco na sequência de uma bronquite que a levou ao hospital.

É preciso recuar aos anos 80, altura em que Cristina Veríssimo chegou à capital do Reino Unido, à procura de trabalho. Nessa altura o seu trabalho não era muito considerado pelos londrinos, dai os comentários negativos.

[artigo: 5104002]

O facto é que Cristina Veríssimo conseguiu. "Acho que comecei a trabalhar com ela por curiosidade, mais tarde, continuei por admiração", resume. Estive no Zaha Hadid Architects durante três anos e meio.

A história da sua contratação é tão especial quanto a descrição que Cristina Veríssimo, atualmente à frente do atelier CVDB Arquitetos com Diogo Burnay, faz da arquiteta, a primeira mulher a ganhar o mais importante prémio de arquitetura, o Prtizker. "Lembro-me ter acabado de sair de uma entrevista de trabalho, por sinal positiva, e passar pelo atelier dela. Eram 8 da noite e foi ela que abriu a porta. Falamos um pouco e deixei-lhe o meu portfolio. Achei tudo muito espontâneo, senti algo muito especial no ambiente e no olhar de quem lá trabalhava", conta.

A história continua: "No dia seguinte recebi uma chamada da secretária dela e acabei por ir ao atelier onde me devolveram o portefólio com um papelinho amarelo escrito por ela que dizia: "you are hired [está contratada]". Não hesitei, claro!

Ameaças a Zaha Hadid por ser iraquiana

Eram tempos de constante "fervilhar", descreve. "As pessoas que lá trabalhavam eram todas muito novas e com personalidades e culturas muito diferentes, ficámos amigos para a vida. Vivíamos literalmente no atelier, pois as horas de trabalho eram longas e a Zaha era notívaga."

Nessa época, Cristina Veríssimo foi testemunha de outro momento importante. "Mostrou-me o que era ter coragem e sabedoria nos tempos difíceis da guerra do golfo em que recebíamos ameaças ao atelier, por ser iraquiana."

Zaha Hadid nasceu no Iraque no dia 31 de outubro de 1950, em Bagdad. O Iraque era, à data, uma monarquia e a sua família estava próxima do poder. A jovem começou por estudar matemática e em 1972 mudou-se para Londres para ingressar na escola de arquitetura e de ser aluna do arquiteto holandês, também Pritzker, Rem Koolhaas.

Os relatos dos que conviveram com Zaha Hadid descrevem uma pessoa instrospetiva, que Cristina Veríssimo confirma. " Solitária e tímida por natureza, tinha dificuldade em gerir o seu lado mais temerário o que a levava a exteriorizar muitas vezes de forma muita expressiva. Esse lado não guardo com tanto carinho. No entanto sabia respeitar limites e marquei o meu desde o inicio, talvez por isso tenha ficado tanto tempo. Quando estava bem-disposta adorava dançar e cantar músicas pirosas. A nossa amizade durou até hoje e foram muitas as formas de carinho que demonstrámos. Essas guardo e estimo muito."

Cristina Veríssimo, autora, entre outros projetos, do museu do Tapete de Arraiolos e a reabilitação do Mercado de Algés, garante que foi com Zaha Hadid que aprendeu "a ter paixão por arquitetura e isso guardo como uma grande dádiva!". E, acrescenta: "Como mulher, sinto que foi uma lição de vida". Isto, numa profissão de homens".

"A Zaha foi uma das mulheres mais impressionantes e inteligentes que conheci", afirma Cristina Veríssimo. Continua: "Misturava uma mente matemática com uma artística, o que era admirável.
Super criativa, mas muito precisa e extremamente rigorosa no que fazia e queria. Tinha um temperamento muito impulsivo e muito pouca paciência para coisas que considerava menos importantes."

A arquiteta foi testemunha de um momento histórico no percurso de Zaha Hadid como arquiteta: "Estive no atelier na altura em que construiu o primeiro edifício, Vitra Fire Station [o quartel de bombeiros na Alemanha]. Conta que foi um "momento fantástico". "Finalmente sentimos que o atelier ia dar uma volta e ia ter o reconhecimento que sentíamos e ambicionávamos."

Os relatos sobre os feitos e o conjunto de obras que deixa espalhados pelo mundo deixa na sombra o que foram esses primeiros anos de trabalho de Zaha Hadid, num atelier pequeno em Londres, em que ela colaborava com outros arquitetos, dava aulas um pouco por todo o mundo, escrevia, pintava e curava exposições. A sua arquitetura era muito artesanal e vivia muito do desenho, aspeto que Cristina Veríssimo realça nas respostas, por mail, que enviou ao DN.

"Nessa altura fazíamos muitos concursos e muitos projetos nunca foram construídos. O atelier era muito experimental e a Zaha sempre foi muito ambiciosa com o trabalho que tinha. Por isso qualquer pretexto significava trabalho e envolvimento total do atelier, que chegou a ter no máximo 16 pessoas. A pintura era uma fonte de inspiração mas também uma forma de rendimento. As maquetes eram fantásticas e imprescindíveis para atingirmos a exatidão e precisão das formas dos seus projetos."

A chegada dos computadores

Luís Santiago Baptista, arquiteto e curador que escreveu sobre o trabalho de Zaha Hadid e a influência das vanguardas russas no seu trabalho, disse ontem ao DN que existiram duas etapas na obra da arquiteta iraquiana. A dos primeiros tempos, em que não constrói nada e a etapa seguinte em que produz a velocidade vertiginosa. "O primeiro computador só chegou no inicio dos anos 90", diz Cristina Veríssimo. É a época em que ganha um sócio, o arquiteto alemão Patrik Schumacher, sócio desde 1988 e atual diretor do gabinete juntamente com Zaha Hadid.

"Quem chegava recebia um treino longo onde se ensinava a desenhar, pintar, fazer maquetes, etc.
Houve um verão que decidimos modificar o atelier e como havia pouco dinheiro fizemos todos a obra do atelier. A riqueza da experiência foi incrível que me abriu uma porta um mundo de possibilidades do que é ser arquiteta hoje", conta Cristina Veríssimo, concluindo: "Essa porta mantenho sempre aberta."

Além do Pritzker, em 2004, Zaha Hadid foi distinguida com dois prémios RIBA Stirling e foi feita Dama do Império Britânico pela rainha Isabel II em 2012. Tinha dupla nacionalidade desde 1989.

Começou, a partir dos anos 90, a construir à escala global. Tem edifícios seus nos EUA, China, Coreia do Sul, Alemanha, Reino Unido e Iraque. Foi-lhe encomendada, em 2010, a sede do Banco Central do Iraque. O seu atelier concorreu ao concurso para o Terminal de Cruzeiros de Santa Apolónia, em Lisboa. O seu objetivo era levar o movimento à arquitetura, daí as muitas curvas dos seus edifícios. Emprestou as suas ideias a mais do que a arquitetura, ao design de interiores, à moda, à joalharia (o seu úlltimo trabalho concluído terá sido uma coleção de joias para o ourives dinamarquês Georg Jensen) e à pintura.

[artigo:5103284]

A morte, súbita, da arquiteta mereceu reações de todo o mundo e de muitos sectores. "Queridíssima Zaha, o mundo vai continuar a caminhar sobre os teus brilhantes pensamentos", declarou o músico Pharell Williams no Twitter. "Foi um extraordinário exemplo para as mulheres", disse Amanda Levete, arquiteta e amiga de Zaha Hadid.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt