Título bem feito para atrair leitores dispensa fórmulas de reality show

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O título, pelo inesperado da linguagem, funcionou como um soco no estômago: "Não é do caralh***?" (sic) O véu do pudor pretendido pelos asteriscos não chegava a ser diáfano nem desafiava a imaginação fantasiosa: era tão espesso e opaco como manto do rei tolo que uma criança denunciou: "Vai nu!"

Tratava-se de um artigo de opinião da jornalista Fernanda Câncio, publicado no DN de dia 7, em defesa da criminalização do assédio de rua na forma de dichote lúbrico e reles. É um direito que lhe assiste e que ninguém põe em causa, é um debate que está a fazer o seu caminho.

Um leitor, FS, que por mais de uma vez solicitou comentário da Direção do DN - e mais tarde ao provedor do leitor - revoltou--se contra o título: "Lê-se e quase se não acredita!" protestou o leitor. "Isto é indecoroso, é inadmissível e não é jornalismo."

Não fiquei a saber se o leitor leu o artigo ou se ficou pelo título. Ou se, tendo lido o texto, apenas lhe sobressaiu a crueza do título. Neste caso, o título terá sido o mais frustrado convite à leitura. Pode ter atraído a curiosidade dos leitores, mas o recurso a uma fórmula de reality show é perversa, não ganha a adesão de leitores a uma ideia, apenas conclama voyeurs.

Um título - dizem as regras não escritas do jornalismo - anuncia o conteúdo de um texto e o texto há de conter o título. Nos textos de opinião, permite-se até que o título diga menos do que o texto, não lhe estrague alguma sequência de argumentos e a conclusão ou a punch line.

Percorri o artigo de ponta a ponta e não encontrei nada no que foi escrito que pudesse justificar o título. A palavra "asteriscada" não ocorre no texto, com ou sem asteriscos, muito menos a frase interrogativa que o anuncia. Assim sendo, o título dizia mais do que o texto - o que é uma originalidade.

Então o que era aquilo, em letras maiores e mais espessas no topo do artigo? Só pude interpretar como uma das possíveis interjeições de fim de leitura, como conclusão do que se leu, expressa a meia voz num círculo de amigos/amigas. Eis uma nova originalidade: o título que furta ao leitor o direito que tem a tirar as suas próprias conclusões e faz logo o comentário ao que se propôs à reflexão. Algo de muito parecido com o que fazem os maus contadores de anedotas que, mal acabam de a contar, têm de explicar o seu picante, a sua matreirice aliás escancarada.

Destas minhas conjeturas de interpretação dei conta à Direção do DN, solicitando um comentário. Respondeu-me o diretor, André Macedo, dando-me, na volta do correio, TPC - trabalho para casa:

"A Direção do DN também considera, em regra, inadequado o uso de palavrões, a não ser que sejam fundamentais para informar o leitor sobre determinado assunto que ficaria oculto sem a sua utilização. E isso é válido para todos os registos usados no jornal, sejam eles reportagem, notícia ou até opinião, embora aqui a amplitude possa ser maior. No caso em análise, foi transmitido isso mesmo à jornalista e colunista, embora a coluna tenha chegado à redação já em cima do fecho da edição."

E seguiu-se o TPC: "Aproveito, então, a oportunidade para perguntar o que acha razoável acontecer nestes casos, já que o livro de estilo, um projeto com barbas aqui no DN, está finalmente a dar os devidos passos até por impulso do provedor. E será esse livro de estilo a fixar a doutrina, evitando assim decisões caso a caso e assegurando estabilidade de critério."

É evidente que não se pode lançar um anátema sobre a publicação de palavrões até em títulos de jornais. Exemplo disso foi a reação do então primeiro-ministro, almirante Pinheiro de Azevedo, a 12 de novembro de 1975, o qual, exasperado com o cerco do pessoal da construção civil a São Bento e, mais do que isso, com o apodo de "fascista" com que a turba o mimoseava e interrompia, soltou um "bardamerda para o fascista" que ficou nas parangonas e na história. Mesmo assim, cavilosamente, uma canção "de protesto" eivada de pudicícia veio a verberar o almirante como um "primeiro-ministro que já manda à merda os operários". Coisas da luta sectária...

O visconde Pierre de Cambronne, general comandante dos granadeiros da Velha Guarda de Napoleão, ficou cercado e em inferioridade numérica pelas tropas do general Charles Colville, em 1815, na célebre batalha de Waterloo. Aos insistentes pedidos do militar inglês, que oferecia todas as honras aos granadeiros de Cambronne se se rendessem, o francês ficou na história com a sua célebre réplica: "La Garde meurt et ne se rend pas!" (A Guarda morre e não se rende!) No entanto, a história instala Cambronne ainda mais alto na peanha dos imortais por outra interjeição pronunciada no fim da batalha, já ferido: "Merde!" (Tradução desnecessária, creio eu...)

O homem foi transformado em escudo do pudor com o seu "palavrão". Durante mais de um século, nenhum articulista necessitou de escrever a palavra, servindo-se apenas da sua perífrase: "Le mot de Cambronne" ou, mais extensamente, em português, "a palavra que imortalizou Cambronne". Idêntica solução e igualmente elevada será referir "a palavra que imortalizou Pinheiro de Azevedo".

É que as duas palavras foram produzidas com espontaneidade, ab imo pectore, do fundo da alma. Para o caixote de lixo da história e com a efemeridade de um fósforo ficou a alusão do ex-ministro das Finanças, Eduardo Catroga, num diálogo televisivo, à pouca importância dos pelos púbicos em vernáculo, mas tendo consciência da grosseria desnecessária que estava a proferir, a ponto de rogar "passe a expressão".

Pergunta-me André Macedo o que acho razoável acontecer nestes casos. Apesar de já ter proposto uma base de trabalho para discussão no DN de um livro de estilo, sou renitente à fixação de regras em letra de forma. Considero, aliás, que um livro de estilo, em vez de constituir um código rígido, que é um vade-mécum para os burocratas e um descanso para os preguiçosos, deve ser um convite à transgressão - sempre que o transgressor consiga, fundamentadamente, fazer melhor do que está previsto. Todo o progresso, todos os avanços civilizacionais ficaram a dever-se a transgressões. Por isso, coarctar a criatividade não é recomendável.

É preciso, no entanto, que tal criatividade seja... criativa - e não uma tolice qualquer. O bom senso é excelente conselheiro e a perceção da função de um título num jornal é guia adequado. Nunca esquecer que um título é lido por mais pessoas do que o respetivo texto, pelo que a linguagem deve ser redobradamente prudente. Mas há que lembrar: no topo da escala, o último responsável pelos títulos é a direção do jornal. Se a sua imagem vai estar em causa com aquilo que se publica, tem de lhe pertencer a última palavra. Não se trata de censura, mas sim de responsabilização. É o voto de desempate.

Mesmo que, no momento, quem dirige não encontre as palavras adequadas para argumentar pela sua decisão, é melhor que siga o seu feeling, o que lhe diz a pituitária, do que deixar andar.

Falo por mim. Neste DN barafustei, repontei, argumentei, rilhei os dentes por cada palavra ou vírgula minha que alguém pusesse em causa - e continuo a fazê-lo. Mas, no momento de decidir, aceitei sempre que o voto de desempate pertence a quem está um degrau acima.

Além de se abrir à criatividade dos jornalistas, o livro de estilo tem de admitir a válvula de segurança que é o veredicto final de quem dirige.

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