Tirar uma filha da beira do precipício com poemas

Um dia, enquanto fazíamos compras na mercearia, ela estendeu a mão para um abacate fazendo que a manga subisse e revelasse uma crosta de aspeto assustador no pulso.
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Quando George W. Bush foi reeleito em 2004, Marisa, a minha filha de 13 anos, ficou tão furiosa que deixou de usar sapatos.

Ela escolheu a forma de rebelião mais ineficaz possível: dois pequenos pés descalços contra o mundo. Ela declarou que não voltaria a usar sapatos até termos um novo presidente.

Eu tinha aprendido, pouco tempo depois de ser mãe, que não vale a pena lutar com os nossos filhos sobre roupas, portanto, observava-a em silêncio enquanto ela saía descalça todas as manhãs e percorria o longo caminho de gravilha na escuridão fria e chuvosa para esperar pelo autocarro escolar.

O diretor da escola ligou-me algumas vezes a avisar que a Marisa tinha de começar a usar sapatos ou seria suspensa. Eu passei as mensagens, mas a minha filha continuou a sua marcha de pés descalços.

Após cerca de quatro meses, ela calçou sapatos sem qualquer comentário. Não perguntei porquê. Não tinha a certeza se usar sapatos era um sinal de fracasso ou de maturidade; perguntar-lhe parecia que poderia adicionar um insulto desnecessário à ferida.

Mas nem toda a sua rebelião naquele ano era tão inofensiva. Eu temia que ela estivesse a agir de forma perigosa.

Um dia, enquanto fazíamos compras na mercearia, ela estendeu a mão para um abacate fazendo com que a manga subisse e revelasse uma crosta de aspeto assustador no pulso, ao longo da linha onde estaria a pulseira do relógio.

Agarrei-lhe na mão e disse:

"Oh, Marisa. Deves estar num grande sofrimento."

Ela desviou o olhar, nada dizendo.

Tentei conter uma onda de náusea gelada ao perceber que a minha filha estava a praticar automutilação.

Fiz aquilo que os pais fazem: consultei profissionais e segui os conselhos deles. Marisa foi a um terapeuta sozinha e fomos juntas a outro diferente.

Senti um murro de horror no estômago quando um psiquiatra me disse à frente de Marisa:

"Ela não deve ser deixada sozinha e não lhe deve ser permitido manusear nada perigoso. Nada de facas. Se tiver medicamentos em casa, mantenha-os fechados e longe dela."

Mais tarde, nessa noite, estávamos a descarregar juntas a máquina da louça, ela de um lado, eu do outro. Inconscientemente, passei-lhe uma faca afiada para guardar.

"Mãe, tem a certeza que pode confiar em mim com isto na mão?" perguntou ela, trocista.

Eu tinha-me aguentado muito bem até àquele momento, pelo menos à frente dela, mas comecei a soluçar incontrolavelmente quando Marisa disse aquilo.

Ela ficou surpreendida e deu-me um abraço.

"Eu vou ficar bem." prometeu.

Comecei os jantares de terça-feira, para os quais convidava toda a gente que conhecíamos e que sabia que não se importaria com a cena caótica de um jantar de família durante a semana. Às vezes apareciam três pessoas, outras vezes eram 20 e comíamos o tipo de comida simples que uma mãe trabalhadora consegue arranjar entre as 17.00, quando chega a casa, e as 17.30, quando as pessoas começam a chegar.

Os pais dos amigos dela vinham com os filhos adolescentes e, pelo menos nessa noite, a casa ficava animada e cheia de gente. Eu queria que a vida viesse ter com ela. Queria que ela flutuasse na corrente de ligações ricas.

Outras noites estavam cheias de silêncios aborrecidos, delicados, pontuados por conflitos menores: eu a resistir ao impulso de perguntar como é que ela estava porque tinha medo do que poderia ouvir e ela numa luta corajosa para tentar entender a adolescência.

Enquanto ela tocava viola no quarto eu ficava do lado de fora da porta fechada e tentava não espreitar, mas quando a música parava tinha de respirar fundo e lutar contra o pânico de não saber se ela ainda estaria bem.

Não era claro para ela se se deveria dar ao trabalho de crescer. Às vezes perguntava-me: "A mãe gosta da sua vida?" O tom da pergunta trazia implícito o julgamento que Marisa fazia da minha vida sem que tivesse de o dizer: a mãe mete--se no carro, trabalha num cubículo, faz as suas tarefas e está irremediavelmente solteira. Qual é o objetivo?

Um dia, o meu filho chegou das aulas a falar sobre o vandalismo que tinha acontecido na escola básica.

"Alguém andou a pintar coisas com um spray de tinta por todo o pátio da escola", disse ele. "Coisas como, "Demasiados arbustos [Bushes] para muito poucas árvores"."

Olhei de lado para Marisa. Os olhos dela encontraram os meus e desviaram-se, confirmando as minhas suspeitas. Não sou fã de vandalismo, mas fiquei realmente feliz por saber que ela se importava tanto com alguma coisa.

Afinal, ela fez aquilo com um rapaz que foi apanhado e obrigado a pagar uma multa. Eu pedi à minha filha para ligar à família do rapaz e confessar, o que ela fez, e ofereceu-- se para pagar metade da multa, o que eles aceitaram.

Comecei a deixar poemas nos sapatos dela de manhã. Ela tinha usado os sapatos como uma forma de protesto silencioso, então eu decidi que iria usá-los para marcar uma posição silenciosa a favor da esperança. Quando uma das nossas principais estratégias como progenitoras envolve deixar Mad Farmer Liberation Front [Frente de Libertação do Agricultor Louco], de Wendell Berry, no sapato da nossa filha, é evidente que as coisas não vão bem.

O que eu queria que ela soubesse é que já houve gente em sofrimento antes que lutou para encontrar a esperança e olha o que fizeram com ela. Fizeram poesia que aterrou diretamente no teu sapato, o mesmo sapato que não usaste durante quatro meses por causa do teu desespero.

Antes de Marisa ir para a escola de manhã quis que ela lesse o poema Wild Geese [Gansos Selvagens], de Mary Oliver, que fala sobre não se ter de ser bom e não se ter de andar quilómetros de joelhos a rastejar. Como escreve Mary Oliver, "Só tens de deixar o animal macio do teu corpo amar aquilo que ama."

Ou este, do Sr. Berry: "Alegra-te, apesar de teres considerado todos os factos."

Iria aquilo mexer com ela? Iria Marisa perceber a minha mensagem de que o mundo a amava e de que ela deveria realmente tentar começar a amá-lo de volta?

Eu não iria dissuadi-la de que estavam a acontecer coisas calamitosas no planeta, mas conseguiria ela, mesmo assim, encontrar motivos para calçar os sapatos todos os dias? Criar uma filha que não tinha qualquer esperança no futuro parecia-me ser o meu maior fracasso de sempre. Normalmente, não convido a poesia para entrar na minha vida quotidiana. Como ecologista, eu abraço a ciência. Mas tudo o que tinha para lhe oferecer naquele momento eram os pensamentos de outros que se esforçaram para ter uma vida significativa e que tinham posto esses pensamentos em palavras, nas palavras mais adequadas e mais simples que conseguiram encontrar.

De repente, percebi - eu que amo a ciência, os dados, os factos e a razão - que, em último recurso, era com a poesia que podia contar. A poesia sabia onde residia a esperança e conseguia provocar aquele nó na garganta que me recorda que tudo vale a pena. A ciência não consegue fazer isso.

Eu acreditava, inexplicavelmente, que era urgente colocar as palavras perfeitas nos sapatos dela todos os dias. Era como se a sua vida dependesse disso.

Um dia cheguei atrasada ao trabalho porque fui comprar uma tesoura e um tubo de cola a um minimercado de um posto de gasolina. Peguei nos utensílios e numa pilha de revistas antigas e fui para um restaurante mexicano barato beber mau café e construir poemas sob a forma de um bilhete de resgate, como se a minha filha tivesse sido sequestrada e eu fosse obrigada a disfarçar a escrita para a recuperar.

Procurei freneticamente a palavra "bones" [ossos] para poder apelar à sua incipiente sexualidade com "I knew a woman, lovely in her bones" [Conheci uma mulher, intrinsecamente bela], de Roethke, mas, supersticiosamente, não queria recortar a palavra "ossos" de uma manchete macabra. Tinha a esperança de que ninguém me perguntasse porque me tinha atrasado, pois não fazia a mínima ideia por onde começar a explicar.

Durante algumas semanas, Marisa não comentou nada sobre os poemas. Ela tinha de saber o que eu estava a fazer porque era obrigada a tirar os poemas dos sapatos antes de os calçar de manhã. Senti-me encorajada, porém, quando encontrei um poema muito manuseado, muitas vezes dobrado, num dos seus bolsos quando estava a tratar da roupa.

Com os dias a ficarem mais compridos, ela ficou mais envolvida na vida. Fazia planos, começou a correr, plantou sementes, decorou o quarto. Eu podia ver que o que a tinha feito calçar os sapatos não tinha sido a derrota, mas sim a maturidade.

Chegou um momento em que soube que ela tinha saído de um túnel longo e escuro. Sabia também que não seria o seu último túnel.

As pessoas mais otimistas são as que frequentemente travam as lutas mais difíceis. Elas não conseguem enquadrar exatamente o que está a acontecer no mundo com as suas crenças e a disparidade é alarmante.

Ela ficou temporariamente atolada na encruzilhada do desgosto por um panorama político desolador com a transição para uma escola secundária medíocre e as vastas questões existenciais de uma adolescente curiosa.

Em retrospetiva, o meu projeto de poesia foi uma inofensiva atuação à margem que me manteve carinhosamente fora do caminho de Marisa enquanto ela lutava não só para ver o horizonte mas também para avançar corajosamente em direção a ele.

Há alguns anos, ela foi entrevistada para se juntar a um grupo de estudantes numa longa viagem à Serra Leoa. O professor explicou que era provável que fosse um período muito difícil, longe de casa, com obstáculos físicos e mentais.

"O que faria se se aproximasse do abismo e este começasse a falar consigo?", perguntou ele a Marisa.

"Bem, a verdade é que eu teria um monte de perguntas para fazer ao abismo", respondeu ela.

*É de amor que se fala nesta coluna, a mais lida do The New York Times. Histórias verdadeiras, contadas pelos leitores. Leia-as no DN aos domingos

Exclusivo DN/The New York Times

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