Na competição temos quatro filmes da Netflix (Bardo, Athena, Blonde e o dececionante White Noise) e um da Prime Vídeo (Argentina, 1985, um dos campeões de popularidade aqui pelos corredores da sala Casino). Corre o rumor que mais filmes ainda sem "dealer" de vendas internacionais também podem vir a ser atacados pelas plataformas. Por exemplo, a Apple +, que nestes últimos Óscares saiu-lhe a rifa boa com CODA, terá de ir ao mercado para conseguir uma truta das fortes. Conforme linguagem futebolística, é nesta janela de mercado, com os festivais de Toronto e de San Sebastián também a jogarem um trunfo forte, que acontece uma espécie de fecho de mercado de compras. Enfim, a verdade é que em Veneza são muitos os que se queixam dessa proliferação dos streamers. É a vida, dizem outros, mas num futuro próximo os festivais de cinema serão antes festivais de streaming? Não há respostas diretas embora um dos (poucos) distribuidores portugueses presentes aqui no festival se tenha queixado que começa a ser complicado ir às compras com muitos títulos já anexados pelas plataformas. Por exemplo, CODA, o ano passado chegou a ter distribuidores internacionais para ser exibido nos cinemas, mas, mais tarde, já se sabe, a Apple chegou-se à frente e essas vendas foram anuladas (a Pris, em Portugal, terá sido indemnizada)....Curiosamente, um dos filmes fortes de ontem era The Eternal Daughter, de Joanna Hogg, a esperança britânica na corrida ao Leão dourado, chegou ao festival sem vendas internacionais. Nesta altura, nada nos diz que uma plataforma milionária não se apodere desta história acolhedora de fantasmas em mansões de campo inglesas. Em Portugal, pelo menos, não há distribuidora. Na verdade, é mesmo um dos filmes com uma estrutura de ritmo e narrativa mais radical vistos nesta competição. Uma obra bem mais "arty" do que os anteriores The Souvenir, mesmo tendo em conta a presença de Tilda Swinton, desta vez em versão a dobrar: ela é a mãe e a filha deste conto sobre uma visita ao hotel que já foi casa de campo da família. Uma estadia que coincide com o aniversário da mãe. A filha, cineasta, está como que a entrevistar a mãe para ter histórias do passado. O problema vão ser as noites. Aparições estranhas e barulhos assustadores parecem antever a presença de fantasmas..Tilda na versão mãe parece a mãe de cabelo branco de The Souvenir, é friorenta e tem segredos de uma infância. Quanto à filha, sente um desassossego estranho, sobretudo por não conseguir a concentração necessária para escrever o guião. Uma filha que pode ser a protagonista de The Souvenir uns anos mais tarde. Joana Hogg parece estar a dar-nos indícios e pistas de género mas o horror escapa pelos olhos de quem aqui faz check-in. O hotel, entre o estremecer da mobília antiga e o cacimbo do jardim emana uma beleza muito cinematográfica, nomeadamente pontuada por um grão na fotografia. De resto, um grau de mau estar flagrantemente intrigante, perfeito para a reviravolta final que é twist de cinema de autor. Mesmo quem não entre nesta provocação de alta arte terá sempre a performance de Tilda Swinton. A atriz escocesa é espantosa nas pequenas grandes angústias das personagens..De Espanha, no Horizonte, chegou uma produção de Penélope Cruz, En Los Márgenes, de Juan Diego Botto, galã argentino que é amigo pessoal da atriz. Trata-se de um filme denúncia sobre a situação em Madrid dos espoliados e emigrantes, uma série de histórias que se cruzam retratando um dia de pessoas que estão prestes a ser despejadas e os assistentes sociais que tentam minimizar o problema. Obra com um discurso político forte, quase militante e que parece apenas acordar lá para o meio, sobretudo após começarmos a ver a personagem de Penélope Cruz menos como vítima e mais como mulher sobrevivente. A câmara de Botto tem algum vigor e o ritmo é furioso o quanto baste. Para o fim, já estamos de colarinho bem agarrado e a respirar de alívio deste olhar de cinema social não ser apenas um panfleto de justiça social da boa consciência de esquerda. Boa surpresa já com distribuição garantida em Portugal. No elenco está ainda o fulgurante Luis Tosar, provavelmente, depois de Javier Bardem, o maior ator vivo do cinema espanhol. Entre o contraste de experienciar um falso filme de fantasmas como The Eternal Daughter e de, a seguir, apanhar com esta lição de solidariedade, o festival marca pontos....dnot@dn.pt