Tiago Oliveira. Um "sobrevivente" que escapou a um incêndio e que prometeu contrariar o sistema

Com a cabeça a prémio pela Liga de Bombeiros, Tiago Oliveira, o antigo sapador florestal das celuloses em quem António Costa confiou a revolução de todo o sistema de proteção das florestas contra os fogos, tem metas definidas. As críticas não o desviam do caminho que traçou e a verdade é que, apesar de muito mais lentamente do que deseja, tem conseguido mudar paradigmas. Nunca houve tanto investimento na prevenção de fogos, desde que morreram 114 pessoas em 2017.
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O presidente da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) é alguém que já sentiu na pele o calor mortal das chamas, quando em 2003 - o ainda ano recorde da área ardida em Portugal - a sua brigada de sapadores florestais foi emboscada pelo fogo e viu morrer dois dos seus 10 camaradas chilenos, quando corriam a tentar escapar.

Considera-se desde então um "sobrevivente" e a sua determinação em desconstruir o paradigma que há décadas é assente no combate aos incêndios, em vez de na prevenção, teve neste episódio o seu ponto de ignição.

"Desde aquele dia, Tiago pensa sobretudo em como Portugal vai sobreviver aos fogos e como pode ajudar o país a mudar o sistema", relatou, no Expresso, um amigo da faculdade.

Tiago Oliveira que nesse ano trágico trabalhava para a AFOCELCA - uma estrutura de proteção contra incêndios da indústria da celulose, com um corpo próprio de sapadores profissionais - foi quem o primeiro-ministro, António Costa, convidou em 2018, no pós-incêndios de Pedrógão, para criar uma nova estratégia que apostasse mais na prevenção dos incêndios e que deu origem à criação da AGIF.

Esta "gestão integrada" tem sido dura, intensa, principalmente porque exige contrariar um sistema e hábitos enraizados há décadas e que fez com que se chegasse a 2017 - o ano em que morreram 114 pessoas nos incêndios de junho e outubro em Portugal - com as medidas de prevenção a contarem apenas com 20% do orçamento e o combate 80%.

A persistência de Tiago Oliveira tem dado frutos, ao ponto de em 2022, de acordo com um último relatório da AGIF, a proporção já ter atingido os 61% para a prevenção e 39% para a supressão.

Tiago Oliveira evita dar entrevistas e não acedeu ao pedido do DN para esclarecer as suas declarações na audição parlamentar que desencadearam uma avalanche de críticas que o transformou em alvo a abater pela Liga de Bombeiros Portugueses (LBP) e por autarcas.

As palavras que desencadearam esta "guerra" foram proferidas por Tiago Oliveira no passado dia 27 de julho, numa audição parlamentar na comissão de Agricultura e Pescas, a propósito do relatório de atividades do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais de 2022.

Contrariando o princípio de que quantas mais aeronaves melhor, disse que "não são necessários tantos meios aéreos" para o combate aos incêndios florestais e pediu aos deputados para que "saiam da discussão do meio aéreo". E, revelando ainda alguns sinais do seu trabalho anterior para a AFOCELCA, desvalorizou a "questão do eucalipto".

"O discurso político de culpabilizar o eucalipto, na minha opinião, está completamente errado, o discurso político de dizer que isto se resolve com mais meios aéreos também está errado, porque sabemos que os meios aéreos não resolvem, encarecem. O fogo resolve-se no chão com as enxadas", frisou.

Mas o que provocou a ira de António Nunes, presidente da LBP, e dos autarcas, foi o que disse a seguir, quando questionou também o facto dos "corpos de bombeiros receberem em função da área ardida", considerando o "objetivo perverso".

O presidente da AGIF sublinhou também que "há municípios a gastar meio milhão de euros, uma barbaridade de dinheiro nos bombeiros, quando não gastam dinheiro a gerir a floresta".

Tiago Oliveira admitiu que ainda existem "incómodos" no país. "Há um conjunto de resistências de natureza política, de distribuição de poder, de não cumprimento de procedimento de poderes, de dinheiros não verificados que têm de ser escalpelizados", disse.

Em declarações ao "Polígrafo", António Nunes (que não respondeu ao DN) refutou perentoriamente que houvesse bombeiros financiados à conta da área ardida, defendendo que "não há nada na lei, em nenhuma lei, e os bombeiros só recebem aquilo que está na lei ou nos protocolos".

Portanto, afirmou, "não há nenhuma contratualização com ninguém que vá receber por área ardida". Quanto à forma como é distribuído o financiamento aos corpos de bombeiros, "é feito pelo índice de risco, mas quando há um incêndio de grandes dimensões são mobilizados os bombeiros de todo o país, que não recebem mais por isso".

"A fórmula é o índice de risco de onde os corpos de bombeiros pertencem, mas cada corpo de bombeiros nunca pode receber mais de 10% do que no ano anterior", indicou o presidente da LBP. Esse critério está disposto no ponto 6 do financiamento permanente disposto na Lei n.º 94/2015 em que se lê que "da aplicação do disposto no presente artigo não pode resultar, em cada ano económico, uma variação negativa do financiamento superior a 5 % ou uma variação positiva do financiamento superior a 10% a atribuir a cada AHB por reporte ao montante atribuído no ano precedente".

Nunes salientou que "mesmo que o concelho ardesse todo, os bombeiros não receberiam mais do que aqueles 10% no ano seguinte" e que, por isso, estão "indignados". "As pessoas depois pensam que deixamos arder para recebermos mais dinheiro e isso não é verdade", frisa.

Num artigo publicado no Público, esta ideia é contrariada por Joaquim Sande Silva, José Miguel Cardoso Pereira e Paulo Fernandes, professores e investigadores de Engenharia Florestal no Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa, no Departamento de Ciências Florestais e Arquitectura Paisagista da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e na Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Coimbra, respetivamente.

Explicando detalhadamente as ponderações tidas em conta para a classificação do risco, assinalam que "a extensão dos incêndios que atingem cada concelho de Portugal e a frequência com que ocorrem são determinantes no cálculo da sua perigosidade pelo ICNF e, de seguida, na avaliação da suscetibilidade aos incêndios florestais desenvolvida pela ANEPC".

"O financiamento dos corpos de bombeiros é, de facto, função da área ardida. Não é apenas função da área ardida, mas sem dúvida que depende dela, do modo determinado na legislação pertinente, operacionalizado na documentação técnica e fundamentado na documentação científica", argumentam.

Também a necessidade de rever todo o modelo de financiamento dos bombeiros está fundamentada numa auditoria do Tribunal de Contas (TdC) de 2022, na qual, entre outros aspetos, foi constatado que "a concessão de apoios municipais às Associações Humanitárias de Bombeiros (AHB) não tem por base uma análise integrada do conjunto de apoios públicos, podendo existir sobreposições, e não obriga ao cumprimento de níveis de qualidade do serviço ou à demonstração da sua utilização nos fins determinados".

É ainda destacado que "o financiamento municipal às AHB é muito díspar quando comparado com o concedido pela Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC). Se em alguns municípios os apoios são pouco significativos, noutros igualam ou superam largamente o financiamento da ANEPC".

Em 2019 o valor das subvenções municipais às AHB comunicadas à Inspeção-Geral de Finanças atingiu 63,6 milhões de euros, o que equivale a 85,4% do financiamento atribuído pela ANEPC.

Afiança também o TdC que "não há mecanismos sistemáticos de acompanhamento e controlo da boa aplicação dos apoios municipais concedidos às AHB, nem definida a entidade responsável por proceder à análise integrada de todo o financiamento público atribuído àquelas associações.

O ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, ainda tentou por água na fervura. "Pude ouvir as explicações do sr. engenheiro Tiago Oliveira, da AGIF, e ele próprio lembrou que não quis ofender nem os autarcas, nem os bombeiros. O que ele quis dizer, todos temos a consciência, é que é necessário investir mais na prevenção do que no combate". Quando ao pedido de demissão por parte da LBP disse não ter "nada a acrescentar em relação aquilo que já disse".

No entanto, a Liga está determinada e, na passada quinta-feira, cerca de duas dezenas de elementos da LBP dirigiram-se a São Bento para entregar ao primeiro-ministro uma carta a exigir a demissão do presidente da AGIF, alegando uma "quebra irrecuperável de confiança".

Mas quem tem acompanhado o caminho de Tiago Oliveira não terá ficado surpreendido. Nas poucas declarações públicas que deu, deixou claro o seu pensamento.

Há um ano, por exemplo, numa entrevista ao DN, desabafava: "O que mais me tem custado neste caminho é, primeiro, a resistência à mudança em relação às políticas públicas".

E sublinhava os seus objetivos. "Temos é de ser capazes de investir na prevenção e dar viabilidade e sustentabilidade económica à atividade florestal e pastoril. Isso implica investir em políticas públicas coordenadas com capacidade de regular a ocupação e distribuição dos espaços. Ou seja, um Estado mais inteligente e mais estratega a gerir as operações e menos operacional a querer fazer a obra (...). Foquem-se no que é estrutural, foquem-se em discutir as políticas e não os acessórios".

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