Tiago Cavaco abre-nos a porta da Igreja Evangélica Baptista da Lapa numa tarde de sol. Por todo o lado há marcas de vida: as paredes da sunday school (espécie de catequese protestante) cheias de desenhos, a grande sala de refeições, a pequena cozinha onde aquele pastor, um dos quatro daquela igreja, trabalha. Foi numa cave de Benfica, e não ainda ali, que pregou os sermões em torno do Evangelho de São Marcos que compõem o livro Milagres no Coração. A comunidade tinha cerca de 30 pessoas. Hoje são cem. A revisão dos textos levou-lhe aos ouvidos um disco homónimo, só de louvor. Louvor erguido a partir do Karate Kid, de David Foster Wallace, que acabou por se suicidar, ou de Breaking Bad. "Disse logo à Rute: isto é uma obra de arte", ouve-se a certa altura sobre a série. Rute é a mãe dos seus quatro filhos. E este é um homem que vive num ringue de boxe com o seu Deus..O que significa "não se voltar o mesmo" da leitura do Evangelho de São Marcos?.O protestantismo é obcecado com a palavra e tem na palavra a sua autoridade. Quando lês o Evangelho de Marcos, o que vai ressaltar é: Que pessoa é esta? Eu digo isso na introdução: se parecer que estou a ser bruto, vá ler o Evangelho e ofenda-se com Jesus, que ele é bem pior do que eu sou. Nós tomamos esse embate com o texto como uma coisa boa. A figura da luta é muito importante. A leitura é sempre uma luta com o próprio Deus e isso não é uma coisa negativa. Jacob luta com o anjo, Abraão recebe a ordem "vai e mata o teu filho". Deus não anda a pedir coisas propriamente civilizadas às pessoas a quem ama. E isso é um paradoxo..E onde entra a alegria?.A Bíblia é um livro cheio de alegria. Se lermos os salmos, uma coisa fortíssima é que às vezes, no mesmo, tens expressões da maior tristeza, queixume, e explosões de alegria. Quando olhamos com os olhos modernos, parece que o salmista é bipolar, precisa de terapia. A alegria não acontece como hoje esperamos que ela aconteça. No Evangelho de Marcos não há grandes comunicações de alegria entre Jesus e os discípulos. That"s not the point. Até porque aquilo que Jesus vai fazer pelos discípulos, que lhes custa a aceitar, é uma coisa que lhes traz tristeza, a morte. O sofrimento faz parte da experiência cristã, mas depois há uma coisa arrebatadora - mais bem explicada por Paulo - que é a possibilidade da alegria no meio do sofrimento. Mas nunca é uma alegria fácil. Claro que para um crente não há nada melhor do que essa alegria, que é ainda mais viva nos momentos mais difíceis..Porquê a necessidade de dizer no livro que há pressupostos que não são postos em causa, avisando os que possam ter problemas com isso?.Acho que é mais produtivo dizer que o Jesus em que eu acredito talvez não corresponda assim tanto ao que leva a pessoa a pegar no livro. O protestantismo não é muito expressivo em Portugal, a tradição religiosa não tem este lado de afirmação pela provocação. Para as pessoas se interessarem pelo Cristianismo tem de ser por categorias de harmonia, de paz, tranquilidade. E Deus é tão criativo que é capaz de chamar pessoas assim. Mas não é essa a marca que eu encontro na Bíblia. Eu encontro uma provocação. O Ricardo Araújo Pereira [que escreve o prefácio] é das poucas pessoas com quem tive uma discussão séria acerca da existência de Deus. Realmente estávamos um contra o outro e não estávamos a dourar a pílula: é uma maneira de respeitara outra pessoa. No livro é um desejo de inteireza.."A tua falta de fé é fake news", canta em Louvação. Fenómenos como o life coaching são sintomas de uma procura de Deus ou de um pendor para a adoração?.Estás a ouvir isto de um pastor, mas eu acho que sim. É inescapável tentarmos tirar sentido da existência. Por exemplo, quando os filhos nascem é surpreendente. Para uma cultura como a nossa, que deixa de acreditar no sentido das coisas, ter filhos torna-se tão avassalador porque de repente há um sentido que foi ganho. Por isso é que hoje estamos tão obcecados com a parentalidade, que é uma espécie de conversão secular. Somos pais e agora temos de ser fiéis a esta fé de ser pais. Eu também tenho quatro filhos, sei o que isso é..Os seus filhos sabem que primeiro está Deus?.Sim, são educados nisso. Uma das piores idolatrias do Ocidente é a da criança: o filho torna-se o sentido da vida. Isso torna-se uma prisão bastante inconstante, porque depois não existe nada mais importante para ensinar ao teu filho do que ele próprio, é uma herança terrível que estamos a transmitir aos nossos filhos. Os cristãos tomam os filhos como uma herança de Deus, está lá no salmo 126..A educação que lhes dá é semelhante à que recebeu?.Claro. Coitados, nós somos muito pouco tecnológicos. A televisão acende-se uma vez por semana, não têm telemóveis. A vida não é fácil para eles..Na vida prática o que significa para eles serem filhos do pastor?.Para a Maria, que vai fazer 14 anos, já é constrangedor, muitas vezes. O facto de haver mais pastores aqui democratiza um pouco. Elas estão na fase de chegada à adolescência. Eu sou chato, digo: "Se a adolescência é quereres conformar-te àquilo que os teus amigos dizem, não é uma grande liberdade o que estás a conquistar." Eu não fui filho de pastor, sou neto de pastor. Acho que é difícil, mas as melhores coisas na vida são difíceis..Andam numa escola pública?.Nós estamos a ficar cada vez mais a família do Ned Flanders [dos Simpsons]: eles estão em homeschooling [escola em casa]..E agora um disco de louvor. De onde vem?.O ano passado foi um bocado fora de série, cristalizado na figura da crise de meia-idade. Quando estava a rever o texto, sai a canção que se chama Milagres no Coração, que era quase uma espécie de derramar do tema central do livro numa pequena canção. O meu caminho musical foi sempre um bocado pela defensiva: sou esquisito, não encaixo, ninguém me percebe. Portanto a minha música sempre foi muito autoblindada. Mas apeteceu-me fazer uma coisa diferente, não me apetece proteger-me. Apetece-me ir direto ao assunto, dizer o que quero dizer..Como?.Quis gravar um disco de música religiosa. Como se diz na gíria evangélica: de louvor. Num país como os Estados Unidos ou o Brasil aquilo tem um circuito imenso. Imagina uma música que é cantada em milhares de igrejas. E eu pensei: Quero tentar fazer uma coisa parecida. Um delírio de grandeza um bocado estúpido... Pensei: Vou fazer um disco religioso em que não tenho problemas em falar de Deus, não quero saber o que as pessoas acham. Tenho 40 anos, já não tenho idade para ter vergonha daquilo em que creio. Não vou mascarar isto com a cena do pastor do rock protestante, como me chamavam. Não quero saber de nada disso, vou falar do coração. E depois saiu aquilo, que é uma coisa um bocado estranha..E faz um disco a falar de coisas terrenas....Sim. Eu não consigo encaixar-me bem nos parâmetros da música religiosa feita nos EUA ou no Brasil : "Oh Deus, eu amo-te." Não consigo louvar assim..Porque tem pouca vida?.Por isso é que eu digo que o louvor para mim é uma luta. Por isso é que o episodio da mulher siro-fenícia é tão significativo. Ela tinha uma filha que estava possuída por demónios, não era judia, vai ter com Jesus. Os discípulos dão-lhe para trás. Ela insiste, faz uma gritaria. E Jesus diz uma das piores (das melhores, mas piores) frases: "Eu vim para os filhos, não vim para os cães", mesmo a distingui-la. É verdade que a palavra que ele usa não é "cão", é "cachorrinho", mas ela dá-lhe uma resposta incrível: "Os cachorrinhos até as migalhas da mesa comem." E Jesus fica admirado com a fé dela. Eu acho que nesse sentido aquela mulher é mais como nós, nos países antigos. Na relação com Deus tens de combater, Deus não te dá logo a coisa. É difícil, tens de lutar, Deus parece dar uma cotovelada e tu insistes. Acho que esse tipo de insistência é a maneira que eu tenho para louvar, por isso acabei por falar de filmes que tinha visto e que mexem comigo. Às vezes tens essa vantagem quando voltas a ver filmes com os teus filhos. Acho que o Karate Kid é um filme incrível. Fico sempre quase a chorar naquela última cena..Quando escreve um livro ou grava um disco está a representar também ali a sua comunidade?.No mínimo, não queres envergonhar as pessoas que representas. Houve uma altura em que eu quis deixar de usar o nome Guillul e acabar com a editora [Flor Caveira, onde apareceram Samuel Úria ou os Pontos Negros]. Por um lado tens de te assumir, mas aceito uma liberdade condicional, porque acredito nela. Vivo melhor quando, ao fazer alguma coisa, tenho de pensar em muita gente. Algumas pessoas claramente dizem: Tiago, detesto a tua música. Aliás, provavelmente a maioria não gosta, o que para mim também é libertador, saber que elas não têm de estar vendidas a mim para me ouvirem a pregar. Outras há que a música ou os livros tiveram um papel fundamental para chegarem até aqui..A música e os livros trouxeram pessoas à igreja?.Eu diria que as quantidades são escassas, mas sim, acontece. Tudo em Portugal acontece devagar e sempre com muito receio. Por exemplo, aquele que é hoje um dos diáconos veio porque assistiu a um concerto - na altura estava a tocar com o Sami, Samuel Úria, e ele ficou impressionado com aquilo, sobretudo com o Sami - e decidiu ir à igreja. No caso, ele converteu-se. Isto foi em 2011. Batizou-se, casou-se, vai a caminho da segunda filha. No caso dele, acho que aquele concerto fez a diferença..Num dos sermões fala do ensino, diz que não deve ser compartimentado, dividido em gavetas. Fazer um disco destes tem que ver com essa unidade? Diz que por se estar a ver Breaking Bad Deus não está noutro sítio? .Acho que tem a ver com isso, com integridade e inteireza. Até determinada altura é muito atraente tu lidares com o desdobramento, porque é uma maneira de te valorizares. Entre os artistas é muito irritante. No caso do disco e do livro, espero que sejam vistos como despojados, simples, isso é recente na minha vida. Eu fui educado a pensar que quanto mais complexo tu és, mais de acordo com a realidade és. Existe a ideia que a vida é tão complicada que se tu falares de uma maneira simples é sinal de que não a percebes. Nesse aspeto houve uma mudança na minha vida. Houve uma altura em que eu quis ser um evangélico intelectual amado pelo mundo e dizer coisas complexas; mas depois houve uma guinada em que eu percebi o valor da simplicidade: vamos lá dizer o que tem de ser dito..[Entrevista atualizada às 16.20]