Thiago Braga: "Meu país? O conceito de país está a desabar"

Para o vencedor do Prémio Literário da UCCLA, Thiago Rodrigues Braga, "a literatura brasileira está a atravessar uma crise igual à da economia. Escreve-se muito mas diz-se pouca coisa com peso".
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A concurso estavam 520 autores nunca publicados e foi o brasileiro Thiago Rodrigues Braga que venceu a 2.ª edição do Prémio Literário UCCLA - Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa. Um conjunto de concorrentes de muitas e diferentes idades - 28 dos 16 aos 20 anos, 260 autores dos 20 aos 40 e 52 entre os 60 e os 90 anos, que enviaram originais de países como a Inglaterra, Holanda, Espanha, Itália, Argentina, EUA e Canadá. O vencedor nasceu na cidade de Goiânia, Brasil, tendo descoberto na universidade a leitura, os filósofos, os poetas e prosadores, temas que estão muito presentes neste Diário de Cão.

Quando descobre que quer ser um escritor?

Bem, ainda não me considero um escritor, pois não trabalho diariamente e com afinco como faziam Proust, Rilke e Dostoievski. Além de que foi somente ao entrar na universidade, aos 24 anos, que descobri que havia em mim um leitor escondido. Comecei a ler filosofia antes de literatura, lia de tudo e sem discriminar o género. E escrevia frases curtinhas nas margens dos livros, à guisa de comentários, interpretando o que lia. Aos 29, começo a tentar imaginar histórias, mas sem nunca fazer uma ideia de que aquilo era uma profissão ou trabalho.

O prémio intitula-se Novos Talentos. Revê-se nesse estatuto?

Ainda não me considero um talento. Sei que o que fiz tem algum valor, mas estou longe disso. Sinto que as coisas apenas começaram, que tudo ainda me falta e que preciso começar a trabalhar com afinco e método. O livro é uma catapulta para coisas maiores, e mais do que nunca, vejo-me lançado para um cada-vez-mais-alto. Quem sabe se terei fôlego para ir até o fim?

No texto de apresentação é comparado a Rubem Fonseca. O que acha disso?

Rubem Fonseca é um escritor que se destacou pela violência do vocabulário, pela coragem de incluir o chulo, o aberrante, o bizarro dentro das narrativas. Mas a diferença substancial entre o Diário de Cão e a sua obra é que ele dá voz a personagens marginais e o meu livro fala do cão interior, o demónio de Dostoievski, as pulsões de Freud, as sensações obscuras de Rilke, os temores de Van Gogh, a busca de Proust. Portanto, é um cão que dialoga com toda a tradição do Ocidente, com nossas raízes e nossos fragmentos. O cão é essa melancolia, os estados deprimentes que devoram o século XXI, as novas doenças de origens obscuras, e é o desconhecido que a ciência defronta em cada curva dos anos. Tentei fazer um livro vasto, que dialoga com os grandes leitores de Tolstoi, com os historiadores da Arte, e dentro disso tudo ainda existe um espaço onde toco no fracasso, nas sensações que torna cada homem um ser isolado e abandonado e fala do medo que todo homem sente em face da desesperança e da descrença.

Está tudo inventado na escrita ou este livro é um passo diferente?

Nós, humanos, estamos muito longe de conhecer os meandros que formam a vida e fazem nascer as diferentes espécies de animais. O bom estudioso de Rilke, das Elegias de Duíno, começa a perceber que uma nova encruzilhada está a despontar para os poetas que vão nascer nos próximos séculos. Já não será possível distinguir filosofia de poesia, pintura de escrita, muitas coisas insabíveis e desconhecidas se tornarão visíveis pelas mãos do artista do futuro.

Preocupar-se com Goethe, Novalis, Holderlin, Colerigde, Verlaine, é interessante para o leitor do seu país?

"Meu país? Creio que em tempos modernos o conceito de país está a desabar, tal como o de centralidade. As fronteiras resistem, é verdade, mas uma nova consciência planetária está a despontar. Mais dois séculos e ninguém mais dirá "Sou brasileiro", Sou alemão", "Sou português"... Nietszche foi o primeiro que fez esse prenúncio de que um Grande Estado Planetário abarcará o globo. Ainda estamos na pré-história e, no ano 2723, seremos lembrados como uma grande pré-história.

Como está a literatura brasileira?

A literatura brasileira está a atravessar uma crise igual à da economia. Escreve-se muito mas diz-se poucas coisas com peso, sumo e vitalidade.

Acha que o Prémio vai abrir-lhe a porta da Literatura no Brasil?

O meio literário no Brasil, as editoras e os jornais são de difícil penetração para escritores que iniciam. No Rio Grande do Sul começam a surgir algumas editoras que tentam encontrar novos talentos e, muitas vezes, despontam novos nomes. Mas de forma geral ainda existe muito bairrismo, onde não se prima pela qualidade do texto mas por questões de credo ou ideologias.

Tem um texto sobre A dor da separação que nada tem que ver com o resto. É uma provocação ou o escritor a mostrar-se humano?

Sim, o narrador oscila entre o seu lado mais humano e essa busca por algo sobre-humano. E sente que é preciso tomar consciência de sua saudade, da sua ferida e da sua dor, para seguir galgando etapas. Portanto, as experiências pessoais são importantes e é preciso pensar nelas e ouvir o que ficou gravado em nós, seja por causa de um ente amado que morreu ou de uma mulher que já não faz parte do nosso dia-a-dia. Nunca acreditei nessa história da carochinha a que chamam objetividade.

No texto O grande século XXI esquece os escritores e os livros e fala de televisão. A imagem é a nova literatura?

A imagem substitui cada vez mais a palavra escrita. Mas creio que existe uma força dialética que criou e constituiu o homem e ainda teremos muitos séculos de literatura escrita, pois o homem tem uma consciência que precisa de ouvir pois o ver não basta. Ao ler ouvimos a própria voz dentro de nós e descobrimos que existem mais vozes em nós e não apenas a com que falamos.

Sente-se que o autor não está preocupado com o leitor. É a verdade?

Sim, é verdade. Procura-se mesmo por um outro leitor, o das catacumbas, o dos delírios, o que se esgueira pelas fendas estreitas do corpo. Que leitor é esse? Rilke chamou-o de anjo, Guimarães Rosa batizou-o de demo. Mas há momentos, como na crítica sobre o início do Anna Karenina e a parte em que fala da forma de trabalho de Proust, em que o narrador dialoga com esses leitores de Proust e de Tolstoi.

O livro é uma colagem de muitos textos. Resulta de uma escrita continuada, ou juntou tudo com um propósito?

Aparentemente, pode parecer colagem. O crítico literário António Carlos Cortez leu o livro de cabo a rabo, duas vezes, e percebeu que existe uma inquietude, uma ânsia e uma busca por algo indizível que interliga todos os textos. Veja-se a ordem com que os capítulos estão dispostos. Os artistas que aparecem no primeiro capítulo predizem que o narrador está em busca de algo, que não se nomeia, esse algo será o Cão, o demónio criador das obras, a força que faz brotar, quem sabe? À medida que avança, as questões tornam mais íntimas ou mais complexas. O Filósofo, último capítulo, toca em questões caras à filosofia, e por ser mais difícil é o último. O propósito não ficará claro no início, porque sendo um livro de quem pergunta e de quem procura, é de quem não possui respostas. Foi chamado de romance-ensaio. Será um novo género? Quem sabe? Passo a palavra aos críticos, que gostam de encaixar e categorizar.

A sua escrita é muito "profissional". Como é que se chega a este estágio?

Não sinto que a minha escrita seja profissional. A bem dizer "a minha escrita" ainda não existe tal como existe a de outros autores. O meu estágio é o da preparação do pintor que ainda não se arrisca a tocar na tinta pois não aprendeu a dominar o desenho e precisa de fazer centenas de esboços para sentir-se mais à vontade com lápis na mão e só então se arrisca no mundo das cores.

Refere autores portugueses. Porque gosta ou faziam falta à versão final?

Falo de Eça de Queiroz, Júlio Dinis ou de Bocage porque são autores que aprecio e, também, porque tento compreender como se forma um estilo. Qual razão faz o Eça polir tanto as frases e Dinis ser tão simples na escrita. Ou a sonoridade de Bocage e de Gregório de Matos, que me tiram do chão pois não consigo ler um ou outro sem deixar de elevar a voz e declamar.

Já tinha concorrido a outros prémios ou foi a primeira vez?

Foi a primeira vez que decidi coligir as páginas de cadernos e transportá-las para a tela de um computador, fazendo correções, retirando algumas partes e descartando outras também.

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