The Serpent Queen: quem tem medo de Catarina de Médici?
Que rainha enriqueceu a cozinha tradicional francesa com receitas da gastronomia toscana, introduziu o uso do garfo e das toalhas de mesa, tornou o balé uma arte de renome internacional, patrocinou a arquitetura renascentista e, supostamente, instigou o massacre da noite de São Bartolomeu (a grande matança de protestantes por católicos em Paris, 1572)? É por estas e por outras que o termo "rainha serpente" se colou ao nome de Catarina de Médici. Alguém cuja simples presença sugeria um ataque silencioso, qual magia negra, tratando-se de uma mulher dotada de inteligência e com ambições de poder. Na verdade, as teorias vilipendiosas em torno da sua reputação só encontram fundamento nesse perfil. "Era a pessoa mais inteligente na sala", sublinhou numa entrevista ao jornal The Guardian Samantha Morton, a atriz que a interpreta em The Serpent Queen. E completa a ideia: "As mulheres inteligentes são perigosas, não é? Ela foi capaz de superar todos os obstáculos e não apenas sobreviver, mas também prosperar e tornar-se a governante mais longeva de França."
Baseada na biografia revisionista Catherine de Medici: Renaissance Queen of France, de Leonie Frieda, a série que acaba de estrear no TVCine Emotion junta-se à corrente de leitura moderna, quase anacrónica, que a ficção televisiva tem vindo a dar às histórias de rainhas. Não sendo propriamente como The Great (HBO Max), esta criação de Justin Haythe usa de algumas técnicas refrescantes para assegurar o tom pretendido. Começando pelo curto mas incisivo genérico de abertura, que mostra a personagem titular a sentar-se no trono, enquanto um ninho de cobras se liberta das suas saias negras e se espalha pelo chão de xadrez, ao som de guitarradas veementes e ferozes. Só falta mesmo uma mensagem de advertência a dizer "esta série não é para meninos".
Porém, desenganem-se os mais impressionáveis. The Serpent Queen não é assim tão irreverente no recheio -- o que até pode ser uma boa notícia para quem aprecia um certo controlo tradicional do drama histórico. Estamos em 1560, a poucos dias da coroação de Carlos IX, e a sua mãe, a rainha Catarina de Médici, escolhe uma nova criada, a quem irá contar a sua história de vida. No início, não é muito clara a razão por que o faz, mas esta é precisamente uma série sobre o ato e o poder da narração, que gera as suas pequenas reviravoltas ao longo dos oito episódios.
Importa também esclarecer a possível publicidade enganosa em relação ao protagonismo de Samantha Morton: até ao terceiro episódio ela surge apenas no princípio e no fim, no tal papel de narradora. Não é que a atriz que interpreta a jovem Catarina de Médicis nos longos flashbacks retire força a The Serpent Queen -- bem pelo contrário, Liv Hill é uma delícia, e confere um ar travesso aos primeiros episódios --, mas isso faz com que o peso de Morton seja mais relativo do que se pensa. No entanto, quando ela está em cena, não há dúvidas de que tudo converge para aqueles sábios olhos azuis e postura de confiança serena.
Ficamos então a conhecer o passado da órfã italiana, criada num convento, membro de uma das famílias mais desprezadas da Europa, e sobrinha do Papa Clemente VII, esse que arranjou o seu casamento com o príncipe Henrique, filho de Francisco I, aliando assim a Casa dos Médici com a família real francesa. Um "negócio" baseado na promessa de um grande dote e na produção de herdeiros... Ora, quase tudo nos primeiros episódios da série tem que ver com as tentativas de Catarina para engravidar. Um tour de force dificultado pela amante do marido, Diana de Poitiers, que o atrai para o seu leito todas as noites, percebendo a certa altura que pode ser vantajoso contribuir para a manutenção do casamento da outra. É aí que a rivalidade das duas mulheres dá lugar a uma aliança temporária -- o que permitiu a Catarina ter 10 filhos, depois do impasse inicial --, ainda que o antagonismo entre ambas fique apenas adormecido, para voltar a ganhar cor mais adiante.
Mantendo o foco de interesse narrativo nos jogos de poder que moldaram o animal diplomático Catarina de Médici, The Serpent Queen só peca pelos desvios demorados que faz para captar as intrigas palacianas entre protestantes e católicos, pedaços de ficção por vezes pouco envolventes ou relevantes no que toca ao retrato da rainha. Mas a série acaba sempre por conseguir recuperar o fôlego e uma especial química feminina, à medida que Morton vai transparecendo a complexidade da sua suposta alma maquiavélica, indissociável de um enorme pragmatismo e visão política.
Com efeito, a atriz britânica dá uma assombrosa gravidade e empatia à personagem, mesmo que não seja totalmente acompanhada pelo resto. A referida pancada moderna de The Serpent Queen passa por palavrões (embora nem um terço dos que se dizem em The Great), algumas vinganças criativas e breves apartes espirituosos, com a protagonista a falar para a câmara. Mas no essencial da execução este é um drama histórico assente nas linhas mais convencionais, revelando uma tensão curiosa entre o desejo de apelar a um público rock and roll (há Patti Smith e PJ Harvey na banda sonora) e o desígnio de oferecer simplesmente uma boa produção de época, com ambientes sugestivos e personagens cativantes. Sobretudo, mulheres -- não apenas Catarina -- a fazerem o seu caminho num mundo gerido por homens.
Voltando ao início deste texto, o assunto da série é, de facto, a inteligência feminina e o temor gerado pela postura daquela que foi capaz de administrar a sua própria transformação e subir ao trono, tornando-se numa das mulheres mais poderosas do século XVI.
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