The Rolling Stones: do alto destas canções 50 anos nos contemplam
Quem disse que o tempo não volta atrás? E quem decretou que essa viagem não pode nunca recolher lições e prazeres que valem quase como a excitação nervosa de um primeiro encontro? Um ano depois de deixarem bem expresso que o seu amor pelo blues continua palpitante, declaração traduzida num categórico e lúdico Blue & Lonesome, a maior banda de rock do mundo, também galardoada com o prémio de resistência, disponibiliza-se para continuar uma pesquisa arqueológica que equivale a uma bela lista de valores acrescentados. Neste caso, entram em campo nada menos de 32 registos (na edição Deluxe, com dois CD, claramente vantajosa face à "corrente", que se fica pelos 18) que os Stones distribuíram por nada menos do que meia dúzia de programas da BBC, com gravações concretizadas entre 1963 e 1965, com e sem público, muito centrada em versões. Há apenas três canções escritas pela dupla que mais tarde ficaria conhecida como Glimmer Twins - (I Can"t Get No) Satisfaction, The Spider and The Fly e The Last Time -, a que se junta uma quarta - Little by Little -, com as assinaturas conjuntas dos mesmos Mick Jagger e Keith Richards, associados ao eminente produtor Phil Spector.
Foi, para os Rolling Stones, uma época clara de afirmação e crescimento: só assim se explica a forma natural como aqui fazem incluir uma abordagem a um original de John Lennon e Paul McCartney, I Wanna Be Your Man, atitude que se compreende melhor ao ganharmos consciência de que ainda não tinha chegado o momento em que a indústria descobriria a margem de lucro que haveria de obter com o lançamento da rivalidade entre os Fab Four de Liverpool e os Stones, sediados em Londres. Há ainda uma outra canção que faz parte do património gravado e recolhido junto de uns e dos outros: Roll Over Beethoven, um original de Chuck Berry e um dos hinos desta fase mais ingénua do rock.
Hoje, podemos avaliar como esse "duelo" perdeu todo o sentido: os Beatles, em matéria de carreira discográfica, não chegaram a durar uma década (1962-1970), embora a longevidade artística se mantenha a todo o gás até aos dias de hoje. Os Stones, bem pelo contrário, levam mais de 50 anos de atividade (primeiro álbum em 1964) e não dão mostras de qualquer espécie de esclerose, apesar de Ronnie Wood (não fundador) ter sido o último a juntar-se ao clube dos septuagenários, com Jagger e Richards nos 74 (este último festejou o aniversário há pouco mais de uma semana) e Charlie Watts nos 76. De alguma forma, é como tentar inventar uma corrida entre sprinters e maratonistas, misturando objetivos e ignorando distintas personalidades. Os Beatles não resistiram às divergências crescentes de dois génios, Lennon e McCartney, enquanto Jagger e Richards, mais limitados mas nem por isso menos carismáticos, souberam perceber a força que resulta da respetiva união ou, ao menos, da manutenção da proximidade profissional. Seja como for, fica patente a humildade dos Stones - nunca correspondida pelos Beatles - ao recorrerem à obra do "adversário".
Amores sem mancha
Pelos anos fora, os Rolling Stones nunca descuraram a hipótese de ir bater a porta alheia. Fizeram-no, a partir da década de 1970, várias vezes: no álbum Sticky Fingers (1971), com o clássico blue You Gotta Move; em Exile on Main Street (1972), com Shake Your Hips e Stop Breaking Down; em It"s Only Rock and Roll (1974), com Ain"t too Proud to Beg; em Black and Blue (1976) com Cherry oh Baby; em Some Girls (1978) com Just My Imagination (Running away with Me); em Dirty Work (1986), com Too Rude e Harlem Shuffle, que foi inclusivamente o primeiro destaque do álbum; em Steel Wheels (1989) com Almost Hear You Sigh. Esta sucessão deixa à vista que, por mais que as suas próprias criações fossem suficientes, convincentes e entusiasmantes, o grupo nunca quis deixar de agradecer aos que avançaram pelos primeiros trilhos de uma música - e de uma cultura musical - que se confirma inesgotável a cada ano que passa.
Não espanta, por isso mesmo, a espantosa coleção de recursos que aqui aparecem, num conjunto poderoso e que, contra o esquecimento, justifica o lembrete destes protagonistas maiores. Além de temas míticos, como Route 66, Cry to Me ou Mercy, Mercy, os Stones tocam diversas obras de criadores maiores, como Willie Dixon (o mesmo que estaria muito bem representado no álbum de estreia dos Led Zeppelin), Muddy Waters, Jimmy Reed, Solomon Burke, Rufus Thomas, Wilson Pickett ou Bobby Womack. Com direito a bis (Cops and Robbers e Mona), também é convocado Elias McDaniel - ou, se preferirem, para facilitar a memória, Bo Diddley. O mais visado é, como seria expectável, Chuck Berry, com direito a meia dúzia de presenças: a já citada Roll over Beethoven junta-se a Memphis, Tennessee, Around and A-round, Carol e Beautiful Delilah, além da imprescindível Come On, utilizada pela banda como single de estreia, em junho de 1963.
Perante este who"s who, quase se torna desnecessário continuar: entre blues e R&B, rock e soul, os Stones chamam a si a "nata" dos autores, encarregando-se depois de deixar a respetiva impressão digital, seja pela vocalização de Mick Jagger, seja pela guitarra assertiva (e pela harmónica que ainda estava a seu cargo) do malogrado Brian Jones, seja pela apresentação - mesmo embrionária - do bloco rítmico, com o baixo de Bill Wyman e a bateria de Charlie Watts sumptuosamente reforçados pela guitarra de Keith Richards. Convirá dizer apenas que as gravações, de boa qualidade e de intensidade transparente, não procuram esconder os erros que aqui e ali fazem parte do espetáculo. Com os Rolling Stones, nunca se tratou de perfeição ou de virtuosismo - antes uma atitude e uma capacidade combativa que ainda os mantêm de pé. Com esta simplicidade contagiante: é só rock"n"roll, mas nós gostamos, e muito, seja quando for. Mesmo 50 anos depois.
On Air Deluxe Edition (2 CD)
The Rolling Stones
Ed. BBC/Polydor
PVP: 21,99 euros