Testemunhas da História
No calor da revolução, dois escritores iam anotando as peripécias políticas nos seus diários pessoais. Com um pessimismo crescente em relação aos acontecimentos de 1975, que ninguém antevira. Miguel Torga (1907-95) e Vergílio Ferreira (1916-96) tornaram-se assim, cada qual a seu modo, testemunhas privilegiadas de uma das mais conturbadas épocas da nossa História.
Os diários passaram a livro poucos anos depois. O primeiro a ser editado - em 1977 - foi o Diário de Torga tratava-se do 12.º volume de uma longa série iniciada em 1941 e só terminada em 1994, um ano antes da morte do escritor. Vergílio iniciou em 1981 a publicação da sua Conta Corrente, que prolongaria até ao início da década de 90.
Nas entradas com data de 1975 regista-se uma característica comum aos dois autores a profunda preocupação com o curso do processo revolucionário, que ambos haviam aplaudido um ano antes. Torga e Vergílio militaram na oposição a Salazar, tendo o primeiro chegado a estar preso nos calabouços do Aljube. Foi natural, portanto, a satisfação com que acolheram a Revolução dos Cravos.
mergulho político. Outra nota comum tiveram ambos participação activa na política pós-25 de Abril, como aconteceu então com largos milhares de portugueses.
Torga, logo no 1.º de Maio de 1974, festejou o Dia do Trabalhador em liberdade. Em Coimbra, onde residia. "Colossal cortejo pelas ruas da cidade. Uma explosão gregária de alegria indutiva a desfilar diante das forças de repressão remetidas aos quartéis. (...) Há horas que são de todos. Porque não havia aquela de ser também minha?", escreveu no seu Diário.
Vergílio Ferreira acolheu a Revolução dos Cravos com incontível alegria. "Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase 50 anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico", registava na sua Conta Corrente a 26 de Abril de 1974. Um ano depois, findou o optimismo. A 22 de Março de 1975, escreve "Vivemos em sufocação, falando baixo, olhar redondo de suspeita. O medo, pois. Já. Como nos primeiros tempos do fascismo. Entretanto, o PS grita, estridente. Cunhal sorri à espera de que se estafe."
Num tom idêntico, embora no seu estilo muito próprio, Torga regista a 7 de Abril "O espectáculo que damos neste momento ao mundo não é o de um povo que se esforça por actualizar ousada e sensatamente a sua vida retrógrada. É o de um manicómio territorial onde enfermeiros improvisados e atrevidos submetem nove milhões de concidadãos a um electrochoque aberrante e desumano."
Enquanto o Diário relata de forma mais esparsa a sucessão de acontecimentos, a Conta Corrente faz uma descrição minuciosa - e quase "jornalística"- dos factos mais relevantes de 1975. Está lá quase tudo do grande comício socialista contra a unicidade sindical, em Janeiro, ao frente-a-frente televisivo entre Cunhal e Mário Soares, em Novembro. Passando por factos tão diversos como a vitória do PS na eleição para a Assembleia Constituinte e o festival de bofetadas em que terminou uma assembleia da Sociedade Portuguesa de Autores destinada a debater a "nacionalização do teatro". E pela ameaça permanente de guerra civil.
Torga mostra-se cada vez mais amargurado. "Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou." (20 de Junho de 1975). "Estamos a viver em pleno absurdo, a escrever no livro da História gatafunhos que nenhuma inteligência poderá decifrar no futuro. Todas as conjecturas têm a mesma probabilidade de acerto ou desacerto. Jogamos numa roleta de loucos, que tanto anda como desanda." (1 de Julho)
"a bandalheira". Vergílio enche o seu diário de parágrafos mordazes, como o que propõe - a 4 de Julho - para descodificar a sigla Copcon "C(omeça) O(utra) P(ide) C(om) O(utro) N(ome)." E desdobra-se em desabafos como este: "A náusea da bandalheira em que isto se transformou." (4 de Julho)
Os acontecimentos internacionais misturavam-se frequentemente com os nacionais, como sucede neste apontamento de Torga, datado de 16 de Julho "O mundo pasmado a olhar o céu, à espera de ver os astronautas russos e americanos no seu primeiro abraço estratosférico, e eu com todos os sentidos postos em Lisboa, à espera que um capitão qualquer decida do nosso destino."
As forças armadas figuram entre os alvos principais dos dois escritores. Escrevia Vergílio a 10 de Julho "O que os militares querem é que a gente vergue o cachaço, para o pôr a jeito da canga, que já nos estão a fabricar em Cuba." E no dia seguinte: "Teremos então uma ditadura militar com o PC a telecomandar."
Os comunistas também serviram de alvo. Com todas as letras, no caso do autor de Conta Corrente, como se verificanas 72 páginas da obra referentes ao ano de 1975. Alguns exemplos "Os comunistas instalaram-se a todos os níveis. Torna-se agora claro que só os fascistas os entendem bem" (14 de Julho); "A enorme maioria do povo português detesta o comunismo" (24 de Julho); "De um a um, os intelectuais vão tomando às costas, como uma cruz, a foice e o martelo, acelerando o passo para as fileiras do PC. É onde se julgam defendidos na representação que para si criaram de 'progressistas'. Mas o comunismo não é uma fórmula reaccionária de isso parecerem?" (31 de Outubro)
A 19 de Julho, o autor de Conta Corrente participou no grande comício do PS na Fonte Luminosa. E anota o facto "Há dias realizou-se um comício socialista monstro na Alameda. Lá estive." A constituição do V Governo e a queda de Vasco Gonçalves são outros temas em foco. A 10 de Agosto, escreve com entusiasmo sobre o Documento dos Nove: "Tudo é possível: uma nova fuite en avant com o estrangulamento dos restos da liberdade ou a queda do Vasco Gonçalves e dos seus comunistas."
"pátria sem rumo". Torga, por sua vez, escreve a 17 de Julho "Reduzido à pura condição política, o homem é um desertor do mundo primordial." A 11 de Agosto, observa: "Esta revolução soçobra por inércia. As pessoas não actuam, por comodidade ou desleixo, à espera que as coisas se resolvam por si." Um mês mais tarde, insere no Diário um poema que começa assim "Pátria sem rumo, minha voz parada / Diante do futuro!"
Embora não militassem em nenhum partido, Torga e Vergílio eram à época simpatizantes do PS. E mencionam até a participação num comício socialista, a 20 de Abril de 1975, em que ambos discursaram. Escreve Torga "Gigantesco comício a que presidi, Deus sabe com que vontade. Mas toda a certeza cívica tem de passar por um permanente activismo de prova, mesmo, ou até principalmente, quando um passado de resistência parece desobrigar-nos." Escreve Vergílio, sobre o mesmo assunto: "Estádio a transbordar. Ninguém me ouviu - houve uma avaria nos altifalantes. (...) Vi o Torga - ia também orar. (...) E extremamente desembaraçado como se fosse um dos oficiais da ordem." Assim foi: com a revolução na rua, nenhum escritor se dava ao luxo de permanecer em casa...