Tesourinhos valentes 

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Circulam nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais (mas também são muito apetecidos por alguns media tradicionais), chamam -lhes os tesourinhos deprimentes e arrancam muitas gargalhadas - são fotos dos cartazes destas autárquicas (muitas vezes misturados com as de 2017). Há de tudo - desde o já antigo cartaz do PCTP- MRPP que acompanha os rostos de dois candidatos bastante velhinhos com o slogan "Ruptura com o Passado!", até ao "é o marido da Lara!". Claro que as intenções também são sortidas: muita gente deveras interessada em contribuir para o desenvolvimento da sua terra, fungos oportunistas, humor voluntário (como o anterior cartaz do PS no Peso da Régua que anunciava "a nossa é maior que a deles!") e até quem já entendeu que a exposição ao ridículo rende visibilidade. Adiante.

Importa sublinhar que o escárnio e desdém que muitos exibem perante este tipo de propaganda política das mais vitalistas eleições em Portugal é semelhante ao que alguns experimentam a ver reality shows - assistem para se sentirem, finalmente, superiores a alguém, para encontrarem na distância de segurança e cobardemente, alvos de bullying e chacota. Na maioria das vezes, este gozo é profundamente classista, impante de altivez social, protagonizado por muitos que enchem a boca com auto-certificados de democratas, defensores do povo e dos direitos de todos. Ou seja, elitistas que adoram mascarar-se de gente simples, alguns que até querem ser populares mas que, de vez em quando, se descaem e exibem o seu apuradíssimo bom gosto zombando de pessoas mesmo simples e realmente populares. De facto, este é um momento em que esses snobs e possidónios, de culminante e refinado paladar, elevada sensibilidade e bom senso, mostram a sua verdadeira face. Cai-lhes a máscara e revela-se apenas uma mole urbanóide, fã da estética lisa e aparada das grandes agências publicitárias, devota da retórica política asséptica e higienizada, fabricante em série, parindo carradas de semelhantes e padronizados. "Pobre sem dinheiro para puxar lustro e passar verniz? Credo!", galhofam os mesmos sofisticados das tascas gourmet, da Lisboa de boulevards com brunch e casco histórico com pin, do alfacinha abastado e forasteiro seleccionado.

O poder local foi uma enorme conquista da democracia e se há desafio ou exigência que se tem colocado à Administração Local é a necessidade de aprofundar a participação dos cidadãos nas decisões políticas, de forma a influenciarem os processos e as decisões. Para isso, urge uma mudança no comportamento das populações face ao topo - é necessário que o integrem, que se insiram, que o tomem como seu. Os tais cartazes menosprezados, no fundo, representam isso mesmo - a ligação dos cidadãos à coisa pública, uma maior participação na vida autárquica que, no limite, levará a que o município seja actor da governança na implementação de políticas públicas. Ou seja; é esta festa que a elite não tolera - não admite que os comuns se apropriem do poder. Menoriza esse povo que sai à rua e se faz presente porque se sente ameaçado. Por isso é que no seu escarninho há sobranceria mas também mora um riso de nervoso. De uma certa inquietação. Geralmente, procedido de um embaraçoso silêncio.

Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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