Como é que o cinema português fala de... Portugal? A pergunta ressurge, ciclicamente, como um desejo ou um fantasma. E é tanto mais premente quanto sabemos que os modelos de raiz televisiva, mais ou menos formatados (como acontece com a telenovela), parecem ter conquistado o direito "exclusivo" de se afirmarem como retratos dos portugueses. Por uma vez, importa dizer que as coisas estão longe de ser tão esquemáticas: o novo filme de Teresa Villaverde, Colo (estreia-se quinta-feira), apresenta-se como um singularíssimo retrato de um Portugal atravessado pela crise económica..Aliás, falar em retrato da crise é algo que pode atrair a noção simplista segundo a qual os filmes só abordam um "tema" quando as personagens falam incessantemente das suas causas ou consequências. Apetece, por isso, lembrar aquela evidência, se não poética, pelo menos didática: um filme é um filme é um filme... Colo não é um relatório estatístico, nem sequer um levantamento sociológico, sobre os tempos conturbados que temos vivido. É, isso sim, uma história de pessoas e sobre pessoas, apostada em dar conta da irredutibilidade das suas identidades e também da especificidade das suas relações..Relações? Eis o perturbante paradoxo: dir-se-ia que tudo se passa num mundo em que, para além dos problemas de dinheiro com que as famílias se confrontam, as relações entre os seres humanos estão congeladas - será que ainda é possível alguma troca afetiva, transparente e genuína?.É disso mesmo que fala o grande plano de Marta (Alice Albergaria Borges) logo a abrir o filme, encostada a uma árvore, abraçando ou repelindo o namorado. A tensão é tão delicada que, de facto, somos levados a pensar que ela abraça e repele o namorado... Vogamos no labirinto anónimo de um bairro de Lisboa, num território observado para além de qualquer naturalismo (tele)novelesco: das linhas austeras dos prédios até à geometria triste dos jardins, tudo nos fala de um tempo de muitas solidões..Encontros imediatos.João Pedro Vaz e Beatriz Batarda interpretam os pais de Marta como peões incautos dessa teia de solidões. Logo depois da abertura, em casa, quando Marta diz ao pai que a mãe ainda não chegou, ele reage num pânico brando - provavelmente, ela deixou-o... E parte à procura da mulher como se estivesse a iniciar uma viagem sem destino, sem lógica, sem regresso. Minutos mais tarde, quando se encontram na noite de um jardim descarnado, Villaverde filma-os, à distância, como se assistíssemos a um "encontro imediato" de uma ficção científica demasiado realista..Não há muitos filmes portugueses com esta capacidade de nos dar a ver aquilo que somos, ou imaginamos ser, não a partir de clichés mediáticos ou dispositivos moralistas, antes através do simples desamparo de existir. Colo é um objeto cético, sem dúvida. Mas é-o através de uma invulgar energia vital, essa que, num filme ou fora dele, nos permite pressentir que há sempre um lastro de verdade humana que nenhuma crise consegue anular..Podemos aproximá-lo de outros momentos altos da filmografia da realizadora como Os Mutantes (1998) ou Transe (2006). Ponto comum a todos eles: um elaborado trabalho com os atores, sempre "forçados" a superar qualquer lugar-comum psicológico ou comportamental - descubra-se, em particular, o contido fulgor de Beatriz Batarda, representando uma mãe que oscila entre o zero emocional e a grandeza trágica. Filme de todos nós, enfim, que mostra o ser português, não como uma "marca", mas uma condição de vida. Assim o saibamos merecer.