Tennessee, um espelho do declínio da democracia na América

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Os Estados Unidos estão profundamente e cada vez mais politicamente divididos, evidenciando fraturas perfeitamente delineadas: conservador rural versus liberal urbano, branco conservador versus mais liberal diversificado, conservadores religiosos versus liberais menos religiosos, liberais educados e conservadores menos educados, e geograficamente, com estados conservadores concentrados no centro do país, particularmente no Sul e no Oeste e estados liberais no Nordeste e na Costa Oeste. A divisão tem vindo a crescer, pois os dois lados estão cada vez mais extremados e mais hostis um em relação ao outro.

O Tennessee é um exemplo típico de um estado encarnado do Sul. Em comparação com o país como um todo é mais branco, (78,2% contra 75,8%), menos latino (6,1% contra 18,9%) mas mais negro (17,0% contra 13,6%), mais rural (33,8% contra 19,9%), mais religioso, com 81% de cristãos (70,6% para os EUA), sendo mais do dobro de evangélicos, 52% contra 25,4% para todo o país, e tem um nível médio de escolaridade mais baixo com 29% de 25+ anos idade com bacharelato ou grau superior, em comparação com 33,7% para todo o país.

Perante estes números, podemos facilmente perceber que o Tennessee é encarnado, votou nos Republicanos em todas as eleições presidenciais desde 1994. Nas eleições presidenciais de 2020, 60,7% votaram em Trump e 37,5% em Biden. Da maneira como funciona o sistema eleitoral dos EUA, quando um partido é dominante num estado, a proporção de representantes eleitos que representam esse partido é muito maior do que o peso do seu eleitorado. Embora quase 40% dos eleitores no Tennessee votem nos Democratas, 8 dos 9 membros (89%) que representam o Tennessee na Câmara dos Representantes dos EUA são Republicanos, assim como os Senadores e o Governador, e no Senado do estado do Tennessee 27 dos 33 (82%) e na Câmara dos Deputados do estado 75 de 99 (76%) são Republicanos.

Porquê essa desproporção? Duas razões principais. Normalmente, a Câmara dos Representantes dum estado sorteia os distritos eleitorais para as eleições nacionais e, se esse órgão for dominado por um partido, definirá os distritos num processo chamado Gerrymandering que favorecerá esse partido (essa prática aplica-se aos estados encarnados e azuis). Além disso, como os eleitores Democratas tendem a concentrar-se nos centros urbanos, é fácil em estados controlados pelos Republicanos reagrupar uma proporção muito alta de eleitores Democratas num pequeno número de distritos, deixando o restante dos distritos estaduais desequilibrados em favor dos Republicanos.

Se, como é o caso do Tennessee, o Senado estadual, a Câmara dos Deputados e o Governador são do mesmo partido, isso é chamado de "Trifecta", dando enorme poder a um partido, e se nas Câmaras estaduais o partido dominante tem uma supermaioria, é capaz de aprovar qualquer legislação ignorando totalmente as pretensões do partido minoritário. A crescente polarização no domínio político dos EUA reflete-se no facto de que dos 50 estados, quase 80% são Trifetas, 22 Republicanos, incluindo 16 com supermaioria Republicana em ambas as Câmaras e 17 Trifetas Democratas, incluindo 8 com supermaioria Democrata. Isso significa que em 24 dos 50 estados que têm um partido com supermaioria, a democracia não pode funcionar, não há absolutamente nenhuma necessidade de debate saudável e compromisso, nenhum espaço para a voz do partido minoritário e noutros 15 estados, embora não tenham maioria absoluta, uma das partes, no entanto, domina o processo. Podemos afirmar que a democracia está a funcionar sem problemas em apenas 11 estados em todo o país.

O estado do Tennessee está nas manchetes desta semana, exibindo as características de uma América ideologicamente polarizada.

Os acontecimentos começaram com o pior tiroteio escolar do estado, quando um homem de 28 anos entrou numa escola em Nashville e usou armas de assalto para matar três crianças de 9 anos e três adultos. Como costuma acontecer após um assassinato em massa, há imediatamente apelos públicos por leis mais rígidas a favor do controle de armas e, nos procedimentos da Câmara do Tennessee que são abertos ao público, uma grande multidão reuniu-se para instar os políticos a endurecer as leis sobre armas. A Câmara do Tennessee, dominada por homens mais velhos e conservadores, ignorou os protestos. Três representantes Democratas, Justin Jones, Justin Pearson e Gloria Johnson interromperam os procedimentos da Câmara para instar a multidão a fazer um protesto público pedindo que a Câmara abordasse questões de controle de armas, impedindo-a de continuar os seus assuntos, com a sessão terminando em caos.

Jones e Pearson são jovens membros negros recentemente eleitos na Câmara, vindos diretamente do ativismo do movimento "Black Lives Matter" após o assassinato de George Floyd em 2020, eleitos por eleitores progressistas cada vez mais liberais nas cidades, Johnson é uma Professora aposentada de 60 anos, também representante de um eleitorado liberal da cidade.

Os Republicanos na Câmara ficaram furiosos com os "Três do Tennessee", que perturbaram os seus procedimentos e decidiram, apenas pela terceira vez desde a Guerra Civil, votar pela expulsão dos três membros. Três votações separadas foram realizadas, os dois jovens representantes negros foram expulsos enquanto a mulher branca mais velha manteve o seu assento parlamentar. Quando lhe perguntaram por que foi tratada de maneira diferente, Gloria Johnson disse: "Acho que está bem claro. Sou uma mulher branca de 60 anos e eles são dois jovens negros.

Os Democratas de todo o país reagiram com raiva à ação da Câmara do Tennessee que é vista como abertamente racista, com os Republicanos silenciosos sobre o assunto. Os dois deputados expulsos que, entretanto, atraíram visibilidade a nível nacional e receberam contribuições de todo o país e que provavelmente serão reeleitos para os seus cargos pelo seu eleitorado, continuarão apesar disso com pouco poder, enquanto os Republicanos mantiverem maioria absoluta na Câmara. E, claro está, é improvável que qualquer legislação de controle de armas venha a ser aprovada no Tennessee tão cedo.

O exemplo do Tennessee representa o estado de grande parte dos EUA de hoje, dois partidos opostos e cada vez mais hostis, com um dos dois dominando na maior parte do país - Republicanos em 22 estados, mas também Democratas em 17 estados - impondo a sua vontade em detrimento do discurso democrático, com ecos de conflitos raciais e geracionais, e sem sinais de qualquer mudança fundamental para melhorar o sistema.

Autor de "Rendez-Vous with America, an Explanation of the US Election System", Presidente do American Club of Lisbon. As opiniões aqui expressas são pessoais e não do American Club of Lisbon.

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