"Tenho uma inquietação complicada de gerir"

Almoço com João Gil, músico
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A mensagem direta pelo Twitter seguiu no início de novembro, convidando João Gil para um Almoço com no DN. Fazia sentido que fosse através de uma direct message no Twitter. Era por aí que tínhamos conversado de vez em quando nos últimos anos. "Claro que sim", foi a resposta imediata, com uma adenda segundos depois: "Sabes que vou ter um concerto no Campo Pequeno a 14 de dezembro?"

Sim, sabia e era justificação mais que suficiente para adiarmos o almoço por um mês. A intenção foi boa, mas pouco passou disso mesmo. Apesar da proximidade do concerto - no dia em que celebra 62 anos -, passámos as mais de três horas de conversa a falar de política, do país e do mundo e só a espaços do que ali nos trazia. Foi, no fundo, um almoço em que também se falou de música e do concerto de quinta-feira. Assuntos que foram entrando quase de calçadeira na conversa, ora puxados por mim ora introduzidos pelo convidado do DN, sempre que se lembrava disso e exclamava: "Mas, bolas, eu tenho de falar do concerto!"

O almoço chegou a estar apalavrado para outro sítio, mas o encontro acabou por ficar marcado para o restaurante Mar do Inferno, em Cascais, junto à Boca do Inferno no início do caminho que vai até ao Guincho. À uma da tarde o sítio estava cheio de turistas, fora e dentro do restaurante. Ainda cheguei a espreitar dentro da sala, uns minutos mais cedo do que o combinado, e quando regressava à porta, para fumar mais um cigarro, estava João Gil a chegar.

Estava claramente a jogar em casa o músico. No caminho atravessou o restaurante cumprimentando todos e cada um dos empregados e foi recebido com um abraço pela chefe de sala. Havia de contar que tem uma relação especial com a mesa e com a cozinha, que, diz, é um recanto especial em qualquer casa. "É na cozinha que tens as conversas mais profundas, que mais te emocionas, que dás mais sinais de ti." Conta-me que há quem diga que cozinha bem e assume que, lá em casa, é ele o responsável por alimentar a família. Mesmo que esteja sozinho, faz questão de cozinhar, de se "tratar bem" e de fazer "grandes refeições, muito sofisticadas", só para ele. Entre uma gargalhada recua no tempo para dar um exemplo dessa relação forte com a mesa e com a comida. "Na primeira tournée que fizemos - Trovante - organizávamos as viagens em função da escala na Mealhada. Aquilo tinha de bater certo. Almoço ou jantar no leitão."

Da mesa saltámos para a política, para Centeno, Costa e Passos, passando por Cavaco e Marcelo e pelo lamento de vivermos num país "demasiado arrumadinho". Já lá iremos, até porque, como diz João Gil, "os músicos também têm opinião". Falemos do concerto, que é o que nos traz aqui. O seu último trabalho - João por... -, editado neste ano, junta uma longa lista de nomes, de vários recantos da música, para celebrar 40 anos de carreira com um misto de temas clássicos e originais. O concerto de quinta-feira chama a palco boa parte dos convidados e, diz o compositor, é um ato único: "Só se faz uma vez na vida e exigiu de nós uma grande capacidade de diplomacia, de diálogo, de encontrar as pessoas certas para os sítios certos. Foi fabuloso e é fascinante. Não podia haver atrito, as pessoas tinham de se sentir bem. Tens de criar laços e de fazer que cada um se sinta dono do que está a cantar. Tens de fazer que a nova geração que está a cantar o Perdidamente, a Chacra das Bruxas Dançando ou o 125 Azul tenha um novo olhar, que se sinta um novo dono de uma velha propriedade." E como funcionou essa coisa de ouvir outros a cantar o que é dele? Nunca teve de intervir, de levar uma certa música e um certo músico para o caminho certo? "Primeiro oiço, e quando sinto que do outro lado já há qualquer coisa, não perco o pulso, não perco a mão. É como um cozinhado, estás a mexer e não podes perder a mão. Eu não perdi a mão, mas deixei que cada ingrediente tenha o seu saber, que se sinta bem dentro daquele cozinhado. Estou muito feliz por isso."

Este pedaço de conversa correu já para o fim do almoço, com os despojos de um belíssimo robalo ali ao lado e enquanto íamos bebendo mais duas cervejas sem álcool bem geladas. Sempre que falávamos do disco ou do concerto, João Gil sublinhava uma ideia. "Este disco não é um tributo à minha pessoa. Estou apenas a arrumar a minha casa." Quarenta anos a saltar de projeto em projeto, de banda em banda, deixam por aí muita música quase órfã. "Andei anos e ainda continuo a andar em grupo. Muito feliz, mas sabendo que, ao longo dos anos, esse material disperso pelos grupos foi ficando num limbo. Trovante ficou na voz do Luís - legitimamente e bem, como é óbvio -, todos os temas que fiz na Ala dos Namorados ficaram com o Nuno e com o Manuel Paulo, e bem. As coisas foram ficando por aqui e por ali, e o que é que eu fiz? Arrumei as peças do meu puzzle e fiz o que qualquer compositor no mundo faz, dei-lhes um teto comum, porque sou o único que esteve nesses sítios todos."

Um arrumar de casa que chega na hora certa, passada a fronteira dos 60 anos. "No fundo, estou a ser o Tom Jobim de mim próprio. Bora lá pôr o compositor cá para fora, bora embora divulgar às pessoas o que fiz. Sem caganças, sem merdas e sem me pôr em bicos de pés... mas, chegou à altura. Já tenho 60 anos, vou fazer 62 no dia do concerto, vou fazer 40 ou 41 de percurso e, caramba, chegou à altura de arrumar a casa. E fiz questão de fazer originais, para que isto não significasse qualquer tipo de autoelogio e de estar só a olhar para os meus rendimentos, mas criando algo de novo, de arriscado, criando fricção. E como é que se consegue isso? Criando desafios. Aos novos, pedir-lhes para interpretar os temas mais antigos, com novos olhares, e aos mais velhos desafiá-los a fazer originais." João Gil conta que o que mais prazer lhe deu, em todo este processo, foi confirmar que "acima de tudo, além desse meu interesse artístico e humano, está a admiração que todos nós temos uns pelos outros. É uma coisa bonita de se ver. O pessoal gosta uns dos outros".

Foi uma empreitada difícil juntar todos esses nomes? João Gil sorri e diz que não. "Isto foi tão fácil de fazer... correu tão natural. Sabia para quem teria de ir cada música. A Chacra tinha de ir para a Ana Bacalhau, como é óbvio. Só podia ser para ela. Sabia que o Carlão é que tinha de ser o dono da 125. Percebi cedo que aquilo era como peixe na água, percebi que estava tudo bem. Foi fácil." Quarenta anos de carreira, muitos grupos e projetos diferentes. Cansa-se facilmente das coisas? Não, garante, e diz que é algo que o preocupa, essa ideia de que salta fora sempre que um projeto evolui. "Fico preocupado que alguém pense que eu me canso. Não me canso de nada. Quando a gente toca Trovante ou Ala dos Namorados, eu adoro fazer aquilo. Neste espetáculo vamos juntar Rio Grande e estou em pulgas por os ter novamente em palco. Se nós pudéssemos voltar àquilo, ao Rio Grande, voltava já. Eu tenho é uma inquietação complicada de gerir. Basicamente sou um compositor e a minha profissão é fazer música. Se fosse pintor estava sempre a pintar, os escritores estão sempre a escrever, não é? Senão, perdes a mão. Com a música é a mesma coisa. Não quero perder a mão da música. A minha doença, o meu problema bom é que assim que termino uma coisa, assim que resolvo um projeto, limpo a cabeça, faço reset e fico disponível. Tenho largos dias de ruído branco na cabeça, não se passa nada até que o músculo criativo começa a borbulhar outra vez".

E o que é que o faz borbulhar por estes dias, agora que já só falta subir ao palco e resolver o concerto do Campo Pequeno? "Vou dar-te uma notícia em primeira mão", diz João Gil, recostando-se na cadeira. "Eu e a minha irmã Margarida [a realizadora Margarida Gil] andamos com um desejo. Ainda é só isso, mas estamos cheios de pica. Ela acabou de fazer o seu filme e lá dentro tem uma situação de cabaré. Ela fez uma letra e eu achei tão boa aquela letra que a desafiei a fazer um musical, tendo como ponto de partida essa pequena letra. Não vou desvendar mais só para não a condicionar no seu processo criativo, não é porque tenha medo que me roubem as ideias. Queremos fazer um musical, com um determinado tipo de cena que vai ser um pouco chocante. Queremos fazê-lo com uma bolinha ali ao canto do ecrã. E escrito por uma mulher vai ser uma coisa..."

Inquieta-o essa ideia de fazer um musical com a irmã e mais. "Eu e o Mia Couto andamos a pensar fazer uma coisa, também. Já tenho muita lenha para queimar... Depois, estou fascinado com a ideia de prolongar este espetáculo do Campo Grande. Isto vai continuar, o meu cancioneiro vai estar em marcha." João Gil promete versões menos ambiciosas do mesmo espetáculo, com convidados pontuais e com novas músicas, porque não? Material não falta. "Tenho dores, fico chateado e triste de não ter neste disco o Fim com letra do Mário de Sá Carneiro, não ter a Travessa do Poço dos Negros, não ter o Lisboa com poema do Eugénio de Andrade, tantas... O Viandante do Carlos de Oliveira, temas que foram muito importantes para mim. Não cabia tudo. Faltam muitas peças, mas não podia meter o Rossio na Rua da Betesga." Pergunto quanto tempo há de durar essa tournée. Com um sorriso, pela contradição, responde: "A vida toda. Agora é a vida toda. Deste não posso mesmo cansar-me [risos]. Isto agora é tocar até partir. Com músicos novos e vozes novas." Da estrada não se há de cansar, garante. "A estrada completa o círculo. O estúdio é um ato um pouco solitário e depois, quando chegas ao vivo, vai-se embora o processo fascinante da construção e tudo vai mudar com o confronto com o público. Eles é que tomam conta de ti e levam-te para terrenos onde não pensavas jamais andar. De repente, aquela canção já precisa de repetir o solo ou alterar a estrutura porque o público implicou e obriga-te a isso."

A meio desta questão sobre "estrada ou estúdio", João Gil para e diz qualquer coisa como "agora é que te vou dizer uma coisa mesmo importante". "Não me chega compor para alguém. Interessa-me compor para uma estrutura que depois chegue ao palco. Só ali é que tenho satisfação física. Nunca fez sentido estar em casa, sentado numa grande poltrona a construir belas melodias. Isso não existe. Não sou essa pessoa. Preciso de ver o olhar das pessoas, de sentir o coração. Preciso de estar ali no palco, a comunicar e a receber os sinais das pessoas, mesmo que não diga nada. Só assim é que faz sentido o que fiz antes."

O desassossego e a tal inquietação não se ficam pela música, pela composição. João Gil começou cedo a ter intervenção política. Foi militante da União de Estudantes Comunistas logo no ano da fundação, em 1972. "Eu tinha 16 anos, faltavam dois para ir para fora e tinha medo. Foi por isso que começámos a falar de política. Muito cedo." Lembra-se dessas discussões aquecidas pelo medo, no grupo dos 15 com Miguel Portas e confessa que "a política sempre foi um assunto fascinante". É por isso que recusa uma ideia batida e repetida. "O músico não é para falar. É o que as pessoas dizem. "Epá, cala-te e toca! Cala-te e canta! Mete-te na tua vida. Os artistas não têm opinião." O problema é que nós temos mesmo opinião. E a classe política ainda não percebeu que cada um de nós é uma caixa-de-ressonância, é um megafone."

Regressando ao início do almoço, que foi por aqui que a conversa começou, falemos então de política. "Eu acho que o Centeno vai marcar uma mudança. É uma vitória de todos nós e pode significar uma esperança maior ao fundo do túnel, para toda a Europa. É um sinal positivo. Aconteça o que acontecer, temos ali um ponta-de-lança." João Gil vê o país francamente melhor, diz que António Costa está de parabéns e afirma que "a direita não percebeu nada. Acho que andam a dormir. Falta-lhes liderança". E o Presidente? "Marcelo está a desarrumar as coisas todas. Veio trazer luz depois de um vazio, de um buraco negro que foi... mas foi o que foi. Está a ser um grande Presidente. Está a quebrar a ideia de que o Presidente é uma figura longínqua, inacessível. Ele está muito presente, está nos bons e nos maus momentos. Vê-se que é uma pessoa muito disponível para os portugueses. Portugal merecia um Presidente assim, este otimismo, este clima pedia um Presidente assim. Capaz de entusiasmar as pessoas, mas também de permanecer vigilante."

Queixa-se de um país "muito arrumadinho, está tudo muito arrumado", e lamenta que o debate político esteja sempre entregue às mesmas vozes. "É uma crítica que eu faço a toda a gente. A todos os media, aos partidos... é lamentável a discussão, a conversa política ser sempre feita pelos mesmos profissionais, políticos ou comentadores. É como o futebol, está tudo muito encaixado, muito previsível. Já sabemos o que cada um deles vai dizer. Não há pensamento livre nem cabeças livres."

João Gil acredita que este é o momento para mudar algo de fundamental no país - ganhar capacidade de risco, criatividade e alargar horizontes. "Agora é que era! Tenho esperança de que esta confiança que se vive na sociedade portuguesa gere um estado de espírito mais propício a mais criatividade." Portugal precisa de uns "novos Descobrimentos", diz. "A nova expansão portuguesa passa por descobrir os portugueses. Está muito por fazer a esse nível. Vamos dar ao chavão da coesão nacional. Não nos conhecemos." Dá um exemplo do que quer dizer com "novos Descobrimentos": foi "um erro crasso, por exemplo, dizer que estavam 11 milhões a assistir e 11 no campo, só porque dava jeito. Não, não foi assim. Afinal quem apoiava a nossa seleção eram os emigrantes, eram mais uns quatro ou cinco milhões". É preciso "ir buscar essa gente", defende. Portugueses que estão lá fora "muito abandonados e de costas voltadas uns para os outros. Está na hora de nos aproximarmos e de acabar com esse divórcio. Portugal é muito maior do que aquilo que pensamos. E isso são recursos que não são aproveitados".

O caminho da música de intervenção poderia fazer sentido para alguém que gosta de ter... intervenção, mas João Gil, que abandonou esse percurso logo aos primeiros passos do Trovante, diz que nem nos tempos da troika sentiu essa tentação. "Já muita água correu debaixo da minha ponte para voltar outra vez... prefiro continuar com o meu trabalho do ponto de vista artístico e envolver-me depois em lutas que considero justas."

Por estes dias defende que é preciso criar ferramentas contra o populismo e que alguma esquerda está cristalizada e perdeu o contacto com a rua, com o povo. João Gil argumenta que "quanto maior for a cultura e o investimento nas pessoas, menores serão as assimetrias de comportamento e menor capacidade de ação tem o populismo". E regressa aos emigrantes. "Queremos ter lá os portugueses longe ainda a viver a realidade musical do antigamente, a viver um país que já não existe ou queremos aproximarmo-nos deles? Queremos ou não investir nos portugueses?" Propõe um "novo caminho marítimo para os portugueses. Já não há mais Índia para descobrir, já não há mais Brasil, o que há é portugueses para descobrir. Mas descobri-los é torná-los melhores, mais ricos, mais fortes". No essencial, resume-se tudo a um desejo: "Eu gostava que Portugal fosse maior. Tenho essa esperança de que o país fique com os horizontes mais largos."

E o Benfica? Sorrimos os dois. Sabemos que esse não é, por estes dias, um tema confortável. João Gil, que costuma sofrer nas bancadas da Luz mas que recusa o que é atualmente o debate à volta do futebol, confessa que ainda não perdeu a esperança no penta e em Rui Vitória. "É um grande treinador e é uma excelente pessoa. Tenho a noção de que o Benfica ainda está em ressaca física e psicológica do ano passado. Há um cansaço físico que leva a um cansaço mental. Estou convencido de que lá para janeiro ou fevereiro a ressaca vai passar e haverá um novo Benfica a surgir. A equipa tem todas as condições para inverter o rumo." Para arrumar a conversa, deixa um aviso: "O Benfica tem de ir às compras, senão não vai lá. Temos de ir ao mercado, e é já." Até porque a concorrência, neste ano, está melhor. "O Sporting está moralizado, mais forte, e temos um Porto hiper-Porto e a jogar muito bem." Política, futebol, o país e o mundo, num almoço em que também se falou de música e de um concerto.

Mar do inferno

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Total: 68,50 euros

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