Simões: "Tenho saudades do Eusébio, talvez por isso nunca apaguei o número dele"
António Simões nasceu em Corroios a 14 de dezembro de 1943, numa família de seis irmãos, duas raparigas e quatro rapazes, em que o pai, Manuel Simões, era o principal pilar para que nada faltasse em casa. Cedo o talento para o futebol tirou-o do caminho da escola e da Matemática. Aos 17 anos iniciou o seu percurso como grande figura do futebol português. Fez parte da equipa do Benfica que em 1962 se sagrou bicampeã europeia e fez parte da seleção nacional que brilhou no Mundial de 1966. Ao lado de Jorge Sampaio fundou o sindicato dos jogadores ainda antes do 25 de Abril. Amigo inseparável de Eusébio, que o apelidou de irmão branco, foi ainda o responsável pela entrada de Luís Filipe Vieira no Benfica.
Quais são as primeiras memórias de criança?
Cresci a brincar na rua com a recomendação do pai para ter cuidado com os sapatos e para jogar futebol descalço. Na altura, o meu pai teve a perceção de que era preciso ir além da quarta classe e foi isso que aconteceu, por isso, depois de tantos anos a viver na Cruz de Pau, mudámo-nos para Almada para eu continuar os estudos na escola Emídio Navarro. Tenho um irmão gémeo. Somos seis irmãos, duas raparigas e quatro rapazes. Os meus irmãos eram mais velhos e, como tal, nós, os gémeos, éramos os meninos queridos da família.
Como se chamava o seu pai?
Manuel Simões. Era uma figura importante na terra. Tinha sido emigrante nos Estados Unidos, onde trabalhou nos caminhos-de-ferro na Califórnia, e com o dinheiro que conseguiu amealhar estabeleceu-se na Cruz de Pau, investindo numa casa de pasto, taberna, mercearia, um depósito de pão... Fez tão bem à comunidade que tem atualmente uma rua com o nome dele. A primeira vez que se viu o carrossel oito, que nos anos de 1950 e 1960 era uma novidade, foi ele que trouxe para as festas populares de julho. Foi o fundador e primeiro presidente do Clube Recreativo da Cruz de Pau.
Diz que tinha de jogar descalço, mas não por passar dificuldades?
Não, nada. Era para eu dar valor às coisas e ao dinheiro. Tínhamos uma infância abundante para o que era normal na altura, mas toda a gente jogava descalço... no pelado e no alcatrão. Foi assim que comecei a mostrar que sabia jogar.
Tinha 12 anos quando o seu pai morreu...
Foi um infortúnio terrível. Era o patrono da família. Lembro-me de jantar comigo e com o meu irmão sentados ao colo, cada um em sua perna. Foi um duro golpe, mais até para os irmãos mais velhos porque a ausência fez que deixássemos de o ter a conduzir o caminho e tiveram de substituí-lo. A minha mãe acabou por assumir-se a trave mestra de todos nós... ela dizia que eu era a alegria da família, precisamente por ser o mais extrovertido.
Mas fazia as suas tropelias?
Fazia, claro. Eu era muito bom aluno a Matemática e um dia o diretor da escola veio ter comigo porque a professora queixava-se que eu não tinha um 20 porque estava sempre com pressa de ir jogar à bola. Tirava sempre 19,3 ou 19,4 porque me enganava sempre em alguma coisa, pois despachava os testes em 20 minutos para ir lá para fora jogar a bola contra a parede. Alguns colegas não reagiam bem e, a determinada altura, o objetivo era fazer o teste cada vez mais rápido para os espicaçar. Em vez de desfrutar da minha capacidade, desfrutava da incapacidade dos outros, o que não fazia qualquer sentido.
Sendo bom a Matemática, o que teria sido se não fosse o futebol?
Acho que se não fosse o futebol teria sido professor de Matemática. Ainda hoje tenho uma relação fantástica com os números. Foi um dom que Deus me deu para além do futebol. Fico com pena de não ter conseguido fazer as duas coisas.
Como foi o seu percurso escolar?
Estudei até aos 16 anos, cheguei até ao antigo quarto ano, mas quando fui para o Benfica comecei a treinar de manhã. Ainda estudei alguns meses à noite, mas acabei por ser preguiçoso e escolhi o que mais gostava. Tenho pena. Há cerca de 20 anos cheguei a pensar recomeçar e ir mais além nos estudos.
E porque não o fez?
Porque lá veio o bicho da bola outra vez, com o convite do Carlos Queiroz para ir para a Federação Portuguesa de Futebol.
Foi no Almada que tudo começou?
Foi o senhor Rodrigues Dias que me descobriu, que tinha sido campeão pelo Sporting, que me viu num torneio, no qual jogava pela equipa dos ciganos. Eu tinha 13 ou 14 anos e jogava com os adultos. Fui então para os juvenis do Almada. Pouco tempo depois aparece o Belenenses louco para me contratar, mas o Almada pediu um dinheirão. Depois aparece o Sporting, onde estive oito meses com contrato assinado mas não jogava porque estava preso ao Almada. Tinha 15 anos. A lei dizia que se deixasse de jogar um ano, ficava livre. O Almada pedia 50 contos, uma loucura naquela altura. É então que o Benfica descobre que está um miúdo talentoso a treinar no Sporting.
Como é que descobriram?
O Benfica treinava no Campo Grande e de lá via-se o campo de treinos do Sporting... Eles viam os meus treinos diariamente. Foram a Almada, negociaram com o presidente e pagaram 40 contos por um miúdo de 15 anos. Foi um bocado escandaloso na altura e até o Ministério da Educação se meteu nisso... Lá fui para o Benfica e a 3 de janeiro de 1961 fiz o meu primeiro jogo pelos juniores. Em abril fui campeão da Europa de juniores pela seleção. Um ano depois, em maio de 1962, estava a ser campeão europeu de clubes pelo Benfica. Os 40 contos já estavam pagos. Foi tudo muito rápido.
O sucesso subiu-lhe à cabeça?
Andei ali um bocado atrapalhado. Ia para os bailes armado em esperto a pensar que as miúdas... enfim, era tudo meu. A minha mãe notou e puxou-me as orelhas. O Benfica fez o mesmo. E percebi que estava armado em parvo e tudo se alterou, graças ao Costa Pereira, Germano, Ângelo, José Águas e Mário Coluna, que eram uma espécie de pais para mim. Eles e a minha mãe foram pilares para que passasse a ter juízo. Era difícil aos 18 anos ser campeão europeu... aliás ainda hoje sou o mais novo campeão europeu da história.
Esteve oito meses no Sporting, mas era benfiquista?
Era benfiquista como toda a família, à exceção do meu pai e de uma irmã que eram sportinguistas.
Como foi estar no Sporting?
A minha primeira grande referência futebolística foi o Albano, dos Cinco Violinos. Isto porque fui ver um jogo do Sporting com o Barreirense e adorei a forma dele jogar... sendo destro, tornei-me ponta esquerda talvez por causa dele. Talvez tenha sido por lá ter estado que não tenho nada contra o Sporting. Esse período ajudou-me a perceber o outro. É claro que me tornei depois um benfiquista louco, no bom sentido.
Foi viver para o lar do Benfica?
No primeiro ano fazia a travessia do Tejo de barco, depois apanhava o elétrico e pagava oito tostões. No segundo ano, ainda como júnior, fui para o lar e perceberam que podia fazer parte dos seniores. É o Bela Guttmann que decide chamar-me à equipa principal porque foi ver um jogo à Tapadinha, com o Belenenses, para a final do distrital de juniores - ganhamos 3-1 com três golos meus - e diz ao senhor Fernando Caiado: "Na terça-feira este menino treina com os seniores." Acho que nem dormi nessa noite. Com 17 anos passei a treinar com os campeões europeus na final com o Barcelona.
Como foi esse primeiro dia?
Quando cheguei à cabina estava o senhor Costa Pereira, o senhor Coluna, o senhor José Águas e aquela gente toda a olhar para mim. E agarrei-me ao Eusébio, que era praticamente da minha idade e já lá estava. Já nos dávamos bem no lar e era com ele que falava, com quem era tu cá, tu lá.
Com tanta reverência, não havia brincadeiras no balneário?
O Germano era mais introvertido, o Coluna não era muito de brincadeiras. Os homens da brincadeira eram Mário João, Ângelo e Cruz, que criavam um ambiente fantástico. Considero que a estes o país não lhes fez justiça... só fez aos grandes protagonistas. E escrevi um livro para falar deles, porque não estou a ver o talento daquela gente, na qual eu me incluo, explodir sem os outros jogadores menos talentosos, mas tão importantes.
Nesse primeiro ano nos seniores já era profissional?
Quando fui para o Benfica tornei-me profissional, a ganhar mil escudos por mês, deram cinco contos à minha mãe sem eu pedir. Na altura houve alguma discussão sobre isso, porque não era permitido ser profissional antes dos 18 anos.
Quando é que lhe puseram a alcunha de Rato Mickey?
Foi quando passei para os seniores. Alguém apareceu com essa ideia, acho que foi um humorista ligado ao jornal A Bola.
Como começou a sua grande ligação a Eusébio?
Conhecemo-nos no lar do Benfica e entrámos quase na mesma altura na equipa principal. Tudo começou devido à necessidade de proteção um ao outro... Criou-se uma grande cumplicidade. Ele sabia que eu era um chato dos diabos e eu sabia quando ele não queria brincadeiras. Não havia um jogo que não houvesse uma zanguinha entre nós, mas ele acabava sempre com o braço por cima de mim e a perguntar: "Onde vamos jantar?" Havia grande cumplicidade e afeto.
Vocês tinham feitios diferentes?
Completamente. O Eusébio tinha momentos que precisava de alguma ajuda e eu era sempre a ancorazinha, muitas vezes para o bem e outras para o mal... quer dizer, para a armadilha. Muitas vezes já sabíamos o que queríamos dizer um ao outro só pelo olhar. Percebemos sempre que nunca nos iríamos trair um ao outro. A única traição que houve foi no dia em que ele disse que eu era o irmão branco dele.
Isso marcou-o?
Imenso. Não estava à espera da lucidez, da forma como ele leu a nossa relação. Fiquei emocionadíssimo. Por mais justo que ele tenha sido, eu não estava à espera. Foi uma frase de estadista, por isso me manifestei muitas vezes contra as confusões que se fizeram em torno do Eusébio, quando diziam que só tinha inteligência para jogar futebol. Isso não é verdade. Uma coisa é a dificuldade em expressar-se, outra é não ser inteligente.
Disse recentemente que a morte de Eusébio mudou a sua vida. Em que medida?
O simples facto de querer falar sobre o Benfica, sobre este ou aquele jogador... já não o tenho para isso. As nossas conversas pelo telefone fazem-me imensa falta. Não há nada que pague isto. Eu sei que quando morrer não posso ir para o Panteão Nacional, mas ponham-me onde ele esteve antes, no Lumiar. Às vezes penso nisso. É uma aflição tremenda, penso muito nele, esta amizade é insubstituível. Ele disse que eu era o irmão branco, mas para mim ele é o irmão de todas as cores. Tenho saudades dele, de ouvir a voz dele, talvez por isso nunca apaguei o número dele do meu telemóvel.
Lembra-se do primeiro jogo pela equipa principal do Benfica?
Foi num torneio no Estádio Nacional, com jogos de meia hora entre Benfica, Sporting e Beleneneses. Agosto de 1961, era Guttmann o treinador e eu tinha 17 anos. O primeiro grande jogo que faço é depois em setembro com o Peñarol para a Taça Intercontinental.
E esse jogo tem histórias curiosas...
Eu e o Eusébio tínhamos ficado em Portugal porque havia um compromisso de que tinha de ir a equipa que tinha sido campeã da Europa com o Barcelona. O Benfica perdeu 5-0 e depois há um telefonema para Lisboa, para o presidente Vieira de Brito e é ele que nos traz da Marinha Grande, onde jogámos pelas reservas, para o lar, para irmos buscar a roupa e seguirmos para o aeroporto, porque o avião saía à uma e tal da manhã. O avião aterrou em Montevideu e eu digo ao Eusébio que tínhamos chegado e ele respondia que não... Estávamos sozinhos no avião quando chega o senhor da agência de viagens a perguntar o que estávamos ali a fazer sentados. E o Eusébio atira: "Mas já estamos em Montevideu?" Ele tinha feito a viagem a dormir e pensava que estávamos na escala em São Paulo.
Só foram chamados à pressa porque tinham perdido 5-0?
Sim, na primeira mão tínhamos ganho na Luz com um golo do Coluna. Nessa altura, a Taça Intercontinental disputava-se a dois jogos, os golos não serviam para desempatar e foi preciso fazer um terceiro jogo. Lembro-me bem do jogo: estávamos a ganhar 1-0 com um golo fantástico do Eusébio, de meio campo, mas aquilo não acabou sem que o Peñarol fizesse os dois golos... cheguei a ter medo porque eles batiam em tudo e todos. O ambiente foi de tal maneira, que no final do jogo estivemos horas na cabina, com o embaixador português no Uruguai a dar-nos alguma proteção: os adeptos cercaram-nos e tiveram de vir os carros da polícia para nos levar para o hotel. E perdemos, não sei o que seria se tivéssemos ganho!
Foi mais marcante a final da Taça dos Campeões com o Real Madrid uns meses depois?
Foi um enorme prazer. Quando entrámos em campo, lado a lado, olho para o Di Stéfano, Puskas, Gento... Só dizia, mas vamos ganhar a estes gajos? Eram os nossos ídolos, que tínhamos visto pela televisão vencer uma final por 7-3 ao Eintracht Frankfurt.
Que sensações teve durante o jogo?
Há imagens minhas a festejar os golos como uma criança... só dava pulos. Era como se fosse o meu primeiro brinquedo.
Em que momento tiveram noção de que iriam ganhar a final?
Quando chegámos aos 3-3, nessa altura viu-se que o Benfica era mais forte, mais fresco e mais jovem. Ao intervalo o Bela Guttmann diz: "Real Madrid velho, não ter força, nós ser mais fortes. Nós fazer golos, nós ganhar." Acertou em tudo.
Após o apito final os jogadores são engolidos pela multidão. Como foi aquele momento?
Os adeptos quase chegaram à cabina. Alguém foi dar com o Ângelo numa vala. Houve um descontrolo total... todos queriam tocar nos ídolos. Ninguém dormiu... A chegada a Lisboa foi impressionante. Num país fragilizado, fechado para o mundo, éramos bicampeões europeus contra os maiores monstros do Real Madrid! Andámos por toda a Lisboa, com toda a gente a correr atrás do autocarro e nós com as mãos fora da janela porque as pessoas queriam-nos tocar. Foi um feito que teve um enorme peso político e social.
Foi como colocar Portugal no mapa?
Foi isso que aconteceu. O Benfica esteve em cinco finais europeias e esta geração esteve no Mundial de 1966. Pela primeira vez Portugal era falado no mundo por boas razões.
O regime fez o aproveitamento destes sucessos?
Sem dúvida, com alguma inconsciência da nossa parte. Quem tinha o poder serviu-se do sucesso desportivo.
Sentiram-se intocáveis para o regime?
Nada disso. A prova disso é que, em fevereiro de 1966, fui mobilizado para a guerra na Guiné e tive de procurar alguém para trocar comigo. Acabei por conseguir, mas custou-me uma fortuna: 150 contos. Eu paguei metade e o Benfica outra metade. Isto a quatro meses de ir para o Campeonato do Mundo. Corri o risco de não ir ao Mundial.
Um dos obreiros desse sucesso foi Bela Guttmann. Como era ele?
Era um treinador à frente do seu tempo. Muito exigente, mas que protegia muito os jogadores. Ouvia-o quase diariamente dizer coisas como: "Signore, fare amore una volta [Senhor, faça amor só uma vez]"; "Signore, por dinheiro na banca [Senhor, ponha o dinheiro no banco]"; "Senhor, bebe só uma cerveja, dormir bem." Era quase todos os dias. Além disso, era muito astuto nas guerras psicológicas, por exemplo, fomos a Londres jogar com o Tottenham, depois de ganharmos aqui 3-1, arranjou lá uma confusão dos diabos dizendo que tinham encharcado o campo... quando na verdade estava a chover. O ambiente tornou-se hostil, mas ele antes do jogo obrigou-nos a ir ao relvado antes de nos equiparmos para nos habituarmos ao ruído dos adeptos. "Agora, estão preparados", disse-nos.
Ele era judeu, falava-vos do tempo em que fugiu dos nazis?
Falava. Ele andou sempre à frente da guerra, a fugir dela e dos nazis, porque quando começavam as perseguições ele já estava noutro lado. Era muito inteligente e tinha o condão de acertar nas coisas. Olhe, quando chegou ao clube exigiu 200 contos de prémio se fosse campeão europeu, toda a gente no Benfica aceitou e depois não havia dinheiro para lhe pagar...
Foi o treinador que mais o marcou?
Sim, foi o Guttmann pela astúcia e o Fernando Riera, um homem muito culto e que quis pôr o Benfica a jogar como o Guardiola fez no Barcelona, por isso foi tão incompreendido pelos adeptos.
É verdadeira a maldição que Guttmann lançou sobre o Benfica?
Tenho muitas dúvidas de que tenha dito que sem ele o Benfica nunca mais seria campeão europeu. O que é verdade é que se foi embora zangado com quem dirigia o clube, que não se portou bem.
Mas essa maldição é um peso que o Benfica carrega?
Como nunca mais ganhou, as pessoas acreditam que foi a maldição do Guttmann. Mas eu não acredito nisso.
Perdeu três finais da Taça dos Campeões. Essa equipa merecia mais?
É um sacrilégio e um desgosto enorme não ter sido campeão europeu outra vez, sobretudo na final com o Manchester United, quando no último minuto o Stepney defendeu um remate que Eusébio nunca falhava, depois de um passe de 40 metros que eu lhe fiz. Com o AC Milan perdemos o Coluna por lesão e não havia substituições... mas fazer uma final em San Siro, no campo do adversário que era o Inter Milão, e o Germano ir para a baliza e jogarmos com dez por causa da lesão com o Costa Pereira não cabe na cabeça de ninguém. Esta geração teve uma dose de infelicidade muito grande. O Benfica era a melhor equipa da Europa.
Qual o melhor jogo da sua carreira?
Houve vários, também na seleção, mas jogar os dérbis no Estádio da Luz, perante 70 mil pessoas, e ganhar... esses foram os jogos da minha vida. Mas também ir ao Campeonato do Mundo e ir por ali a fora, ganhar ao Brasil e tornar mítico o jogo com a Coreia do Norte, depois de estar a perder 3-0, são momentos inesquecíveis.
Quando partiram para Inglaterra para disputar o Mundial 66, pensavam no título mundial?
Quando ganhámos ao Brasil começámos a pensar nisso. Se calhar por isso é que estivemos a perder 3-0 com a Coreia. Nesse jogo, Otto Glória teve um momento especial ao intervalo, com palavras que não podem ser transcritas. Foi uma repreensão tremenda que acaba com ele a dizer que não ia para Lisboa se não ganhasse aos coreanos porque tinha vergonha. No túnel, o Mário Coluna, com aquela voz de trovão, disse: "O homem tem razão."
A meia-final com a Inglaterra no Mundial 66 ainda está atravessada na garganta?
Portugal não devia ter ido jogar a Londres quando o jogo estava marcado para Liverpool, depois calcularam mal o tempo de viagem do hotel para Wembley e chegamos duas horas antes do jogo. Foi um desgaste tremendo porque o balneário estava fechado, tivemos de esperar sentados numas escadas. A derrota foi injusta, mas perdemos com os campeões do mundo. Mas o que mais me marcou foi haver gente a dizer que, já tinha sido bom teremos chegado até ali... era uma mentalidade muito pequena.
Qual o momento mais difícil da sua vida?
Foi terrível. A 12 março de 1972 fui pai de um rapaz que nasceu com deficiências cardíacas... hoje ter-se-ia salvo, mas acabou por falecer na madrugada do dia que nasceu. Eu estava com a equipa para jogar com o U. Tomar e foi o presidente do Benfica, o doutor Borges Coutinho, que me deu a notícia. Fiquei devastado. Mas depois comecei a pensar se havia de jogar, pois Eusébio e Torres estavam magoados e estavam fora. O presidente disse-me para fazer o que quisesse e depois de abordar o assunto com a minha ex-mulher... ela disse-me para jogar e vir logo embora para Lisboa. Só que antes do jogo deram a notícia nos altifalantes do estádio... foi terrível. Marquei o golo, ganhámos por 1-0 e assim que acabou o jogo o presidente levou-me de imediato para Lisboa. Serviu para sermos campeões invictos... mas foi uma mistura de sentimentos terrível.
As suas três filhas olham para si como uma estrela do futebol?
Elas estão na casa dos 50 anos e noto o regozijo que elas sentem pelo respeito que as pessoas demonstram por mim. Não falamos dos títulos, mas das coisas que passámos juntos tendo o futebol como componente.
Teria feito algo de diferente na sua carreira?
Seguramente e uma delas teria sido não ter saído tão cedo do Benfica para os Estados Unidos, poderia ter ficado mais um ou dois anos.
Mas antes disso teve outras hipóteses de sair?
Tive, mas naquela altura os meus direitos eram não ter direitos [risos]. Estive para ir para o Boca Juniors... uma história dos diabos, depois apareceu Atlético de Madrid, Inter Milão e não houve mais porque os clubes sabiam que nem valia a pena falar com o Benfica...
Como foi essa história do Boca Juniors?
Ofereciam-me 100 mil dólares por ano. Isto em 1967. Mexeu comigo, mas não me deixaram sair.
Foi por causa disso que fundou o sindicato dos jogadores?
Sim. O meu advogado era o doutor Jorge Sampaio, que considerava a legislação ilegal. Nessa altura, tive um contrato de quatro anos assinado com o Sporting, segundo o qual só cumpria o primeiro ano e depois ia para o Boca Juniors, mas acabei por desistir porque me fez muita confusão estar no Sporting e ter de ir jogar à Luz. Esse episódio acabou por ser o estímulo para criar o sindicato, foi então que nasceu o direito de opção, com a ajuda de Jorge Sampaio, que foi o primeiro advogado do sindicato. Arrisquei imenso, criei antipatias, mas fiz o que devia ter feito.
Essa sua luta causou-lhe problemas?
Sim, com o Benfica e com o regime. Estive suspenso por um mês pelo Benfica por ter reivindicado os meus direitos e proibido de entrar nas instalações do clube, com o regime a ajudar porque não fui nada simpático com eles e fui chamado à sede da PIDE. Antes do 25 de Abril era muito difícil reivindicar.
Como é que resolveu o problema com o Benfica?
Foi antes de um jogo com a Académica, que estava em segundo lugar. Havia umas lesões e como tínhamos de ganhar, chamaram-me. Vencemos 3-0 e eu fiz dois golos. A partir daí não se falou mais do assunto.
Quanto é que acha que o Simões valeria atualmente no mercado?
Não faço ideia. Hoje fala-se em 100 milhões como se não fosse nada... se calhar fico-me pelos 100 milhões de euros.
Porque se arrependeu de ter deixado o Benfica tão cedo?
Podia ter jogado perfeitamente mais dois anos, mas o 25 de Abril e o facto de ter sido candidato a deputado, embora como independente pelo CDS, teve um custo. Não ser de esquerda em 1975 era visto como não montar o cavalo certo. Um ano depois fui eleito, mas percebi que a revolução não tinha sido para todos, mas apenas para os que eram de esquerda. Ainda hoje o país vive esse complexo de esquerda. Mas a democracia está nas pessoas e não nos partidos.
Como foi a experiência de deputado?
Estava nos Estados Unidos e dei por terminada a minha carreira de futebolista para ser deputado em 1977. Vim para Portugal para não perder o mandato. Foi muito interessante. Estava na área dos emigrantes de fora da Europa e foi muito fácil para mim porque não havia legislação feita e consegui muitas coisas. Por exemplo, Portugal tinha um défice terrível e o governo precisava da entrada do dinheiro dos emigrantes, mas não queria dar-lhes nada em troca e então lutei por um juro superior e pela isenção do imposto para trazerem o automóvel para o país... No fundo, brilhei pela ausência de leis.
Porque emigrou para os Estados Unidos?
Foi através do meu amigo António Frias, um emigrante nos EUA. Fui a pensar nas minhas filhas, que podiam lá fazer a escolaridade. Os 20 anos que lá passei serviram para ter conhecimento e para crescer.
Mudou a sua mentalidade?
Mudou a minha forma de ver o mundo. Em 1991, vim a Lisboa ver o Benfica-Marselha das meias-finais da Taça dos Campeões, do golo do Vata com o braço, e o jornalista Manuel António fez-me uma entrevista para o jornal A Bola e às tantas perguntei-lhe pelo departamento comercial dos clubes portugueses, pelo marketing e disse-lhe que não percebia por que razão os jogadores não usavam sempre o mesmo número com o nome nas costas... A determinada altura ele disse que eu estava todo americanizado. Em 1975, quando eu e o Eusébio fizemos o primeiro jogo nos Estados Unidos, tínhamos as nossas camisolas penduradas no balneário com o nome! Só 20 anos depois começou a fazer-se isso em Portugal. Quando cheguei ao Benfica como diretor desportivo, acrescentei nos contratos dos jogadores alíneas para que eles fossem obrigados a ir a sessões de autógrafos, às escolas, enfim prestar serviços junto da comunidade, como se fazia nos Estados Unidos.
Foi difícil regressar de vez a Portugal em 1993?
Custou readaptar-me, pois cheguei de um país onde se exerce a democracia e que me deu um grande ensinamento cívico, de cultura desportiva e democrática, onde as virtudes quase sempre ganham aos defeitos. Cá era diferente. Infelizmente hoje os Estados Unidos têm um presidente com o qual não simpatizo, que é o Trump.
O que teme em Donald Trump?
Estamos a assistir a um regresso à prepotência e à incapacidade de quem vota de poder romper com isso. É uma espécie de democracia ditatorial e não estou a gostar.
Teme que essa tendência chegue a Portugal?
O nosso é um regime de faz-de-conta, o que é perigosíssimo. É assim que as ditaduras voltam. Estou apreensivo em relação ao caminho que estamos a seguir. Não é bom estarmos a caminho daquilo que chamo de falsa democracia. Não sei qual é pior: uma ditadura em que sei que não posso falar; ou uma falsa democracia que penso que posso falar, mas afinal não posso.
O que dita essa falsa democracia?
É a dependência dos que não têm dinheiro daqueles que têm o poder financeiro. É cada vez mais isso que acontece, quem tem o dinheiro está mais protegido.
É o Carlos Queiroz o responsável por voltar a Portugal?
Não. É o responsável por eu voltar ao futebol. É um homem que teve uma ideia genial para o futebol em Portugal, que ensinou a saber competir com o talento que havia. É ele o pioneiro de uma mudança no futebol português e o país tem sido injusto para com ele. É verdade que às vezes ele mete o pé na argola, mas os génios também cometem erros. Sem ele e o professor Nelo Vingada a perceber a nossa vocação, nunca teríamos chegado onde chegámos.
Foi marcante ter vivido e trabalhado na Arábia e no Irão?
Imenso, mas não gostei do Irão por ser um regime falso, hipócrita, sustentado numa religião que a maior parte não cumpre e não quer saber. Foi um país onde vi corrupção, droga, prostituição e álcool como grande negócio, apesar de ser tudo aquilo que a religião proíbe. Isto além da limitação dos direitos das mulheres. Vivi lá três anos e foi como se tivessem sido 30.
Regressou ao Benfica pela mão de Vale e Azevedo. Porquê?
Foi um amigo que me convenceu que eu poderia ser o diretor desportivo num novo projeto. Fui ingénuo. Fui traído por um desejo exagerado de voltar ao Benfica. Fui traído pelo coração e ao fim de seis meses vi que tinha cometido um erro e saí.
O que o fez perceber esse erro?
A mentira constante. Ver o meu clube a perder recursos com um presidente a dizer que estava no bom caminho, quando tudo estava a degradar-se. Estou muito arrependido de ter ido para o Benfica nessa altura, devia ter feito uma reflexão mais madura e menos emocional.
Mas se não fosse essa má experiência talvez não tivesse voltado com Manuel Vilarinho...
Sim, é capaz. Foi uma tentativa de corrigir o erro e dar aquilo que aprendi e que não me tinham deixado implementar. Tinha de fazer uma coisa diferente e valeu a pena. Foi o período mais difícil da história do clube.
O que mais o impressionou?
Foi a vontade férrea de muitas pessoas naquele início da recuperação dolorosa, com resultados péssimos, mas que foi o início para agora podermos desfrutar do sucesso.
Foi o António Simões o responsável pela entrada de Luís Filipe Vieira no Benfica?
Sim, fui eu que falei nele pela primeira vez ao presidente Manuel Vilarinho. Fi-lo porque um dia o Luís Filipe Vieira disse-me que se pegasse no Benfica faria isto e aquilo... Eu disse-lhe que era preciso dinheiro e ele respondeu-me que isso não era problema porque se arranjava. Fui falar com Vilarinho que queria alguém para o ajudar. Disse-lhe que era alguém com visão e dinheiro. Então apresentei-os e foi assim o início do Luís Filipe como gestor do futebol.
Tendo em conta as fricções que tem tido com Vieira, está arrependido de tê-lo indicado?
Não. Há coisas na personalidade do Luís Filipe nas quais não me revejo, mas reconheço que há um trabalho extremamente positivo como presidente. Foi muito bom ele ter vindo para o Benfica e há um trabalho que temos de realçar. Não tenho nada de me sentir arrependido.
O que Luís Filipe Vieira fez de mal no Benfica?
Recordo-me que, quando chegou, o primeiro erro que cometeu foi falar da equipa maravilha, que era no fundo o refugo com jogadores como velhos como Drulovic, Zahovic... revelou uma falta de maturidade tremenda. Com o tempo foi aprendendo, até no discurso e as coisas boas que fez foram mais do que as más. Contudo, não esqueço que foi o primeiro responsável de o Benfica não ter sido pentacampeão, por ter vendido jogadores num ano em que não o devia ter feito. Hoje, teríamos sete ou oito campeonatos seguidos, ainda para mais com o equilíbrio que o plantel que tem e com a saúde financeira que tem.
Está magoado com o presidente do Benfica?
Houve coisas que eu não gostei e sobre as quais manifestei o meu desagrado. Fi-lo na altura que o tinha de fazer. Não preciso de quem está no Benfica e ninguém me limita. Não traio os meus valores adquiridos no clube. Mas este sentimento tem muito mais que ver com as pessoas que rodeiam Luís Filipe Vieira. Ele sabe quais são e nada mudou, por mais campeonatos que o Benfica ganhe. Mas atenção, não sou candidato a nada nem apoiarei ninguém nas próximas eleições, isso que fique claro.
Sente-se reconhecido e valorizado pelo clube?
Isso não me faz diferença. Não estou à espera do reconhecimento do Benfica. Sinto mais desapontamento por ninguém falar dos quatro bicampeões europeus que estão vivos do que estar magoado por falta de reconhecimento por mim. Devem tomar atenção a eles, tentar saber como estão e fazer-lhes justiça como foi feita, e bem, em relação a outros.
E em relação aos adeptos? Sente-se reconhecido?
Não tenho a mais pequena razão de queixa. Não admito é que ponham em causa princípios e valores que aprendi no meu clube. Há muita gente que é do Benfica, mas aqueles quatro bicampeões europeus e eu que sou campeão europeu, somos o Benfica. É esta a diferença.
Assalto em Cabo Verde foi o susto da sua vida?
Assim que fui assaltado vi logo que tinha partido qualquer coisa, o raio X revelou que tinha sido o fémur. Têm sido sete meses de grande infortúnio e a pior coisa que me aconteceu foi ficar dependente dos outros. Felizmente a recuperação está a terminar, espero não ficar com mazelas e continuar com qualidade de vida. Fez-me pensar o quão frágil é o ser humano. Foi uma infelicidade tremenda, mas mostrou a grande fatia de gente que se revê na minha pessoa. Ainda há muita gente boa por aí.
Quem mais o surpreendeu?
Gente de outros clubes, não do meu. Houve gente que me telefonou que não vejo há 20 ou 30 anos e que teve a gentileza de perguntar como estava.
E do seu clube?
Muita gente sócia e adepta, praticamente ninguém do clube. Nunca ninguém se preocupou se precisava de alguma coisa, mas não é isso que me faz ficar triste. Não quero que se preocupem ou me telefonem, tenho o suficiente para ser feliz fora do clube.
O presidente ligou-lhe? Teve algum tipo de atenção?
Nunca o fez, mas casualmente encontrámo-nos e perguntou... mas não estou magoado por causa disso. Não me estou a queixar.