"Tenho abraçado mais os meus filhos. Porque penso que podia ter-nos acontecido"
Shirly Kohai tem 40 anos e está há três em Portugal, um país que escolheu porque tinha tudo o que procurava em família: um ambiente calmo e relaxado, mas europeu e ligado a uma comunidade global, segurança onde desenvolver o seu negócio - é CEO da Covent IT Portugal - e ver crescer um dia os netos. Mas também tinha o calor humano dos portugueses e o bom tempo que é importante para os israelitas como ela. E não se arrepende.
Mas o sorriso com que explicava que os filhos de quatro, oito anos e meio e onze anos estão adaptados e felizes, desapareceu ao falar do dia 7 de outubro, quando os militantes do Hamas entraram em Israel. "Não é algo que se consiga descrever em palavras", diz, admitindo que sempre foi pessoa de pensar nos piores cenários possíveis. "Mas nunca nos meus piores pesadelos poderia imaginar acordar e realizar que os portões do inferno se tinham aberto."
E vive numa contradição. "Estás em Portugal, tens uma boa vida, o sol está a brilhar, sentes-te segura. E depois pensas no que os teus irmãos e irmãs em Israel estão a viver, na tua mãe, tias, sogra... Já passou mais de um mês e acho que, como todos os israelitas ou judeus, tenho abraçado os meus filhos dez vezes mais cada dia. Porque penso para mim que podia ter-nos acontecido a nós." E ainda não voltou a dormir uma noite seguida.
Shirly conta como de repente, nas tarefas banais do dia-a-dia, os pensamentos vão para os 239 reféns, especialmente as 35 crianças. "Estou a cozinhar e dou por mim a pensar. Será que têm comida?" E admite que chora, porque a sua vida é boa, os filhos estão bem, mas sabe que o seu país está a arder. "Pergunta-me como estamos? Não estamos bem."
E não é só em Israel que pensa. "Tenho que ser honesta, talvez esteja a dizer algo menos popular, mas não importa, não sou política. O meu coração também vai para as crianças que estão em Gaza. Nenhum civil inocente, nenhuma criança ou idoso, devia sofrer em qualquer lado." Shirly é clara em explicar que a guerra de Israel é contra o terrorismo, não contra as pessoas, que toda a sua vida defendeu a paz com os palestinianos. "O meu desejo é que fiquem livres do Hamas", disse lamentando que estejam a ser usados como escudos humanos. E deseja verdadeiramente que Israel acabe com o Hamas, lembrando que o seu país só pede o direito de se defender contra uma organização terrorista e a libertação dos reféns.
Apesar das suásticas que têm surgido nas paredes, Shirly não sentiu na pele o aumento do antissemitismo. "Os graffiti de "Libertem a Palestina" não são problema, também quero que os palestinianos tenham uma boa vida. Mas quando vejo as manifestações ou a sinagoga do Porto vandalizada... Isso não é sobre direitos humanos ou libertação. É ódio puro", diz, convencida que isso não representa a maioria dos portugueses. E acredita que muitas pessoas que saem à rua a protestar não sabem os factos. "Quando pedem "do rio ao mar a Palestina será livre" estão basicamente a dizer que eu devia morrer. E dizem-no em nome de uma suposta humanidade, o que para mim é de loucos".
Shirly trabalha na área de serviços IT e, noutro ano, não teria tido tempo para estar com o DN numa pausa para almoço na semana em que Lisboa acolheu a Web Summit. Mas desde que Paddy Cosgrove, o fundador e agora antigo CEO do encontro tecnológico, partilhou nas redes sociais "propaganda quando os israelitas estavam a ser mortos" e não condenou o terrorismo, que resolveu cortar os laços. "Senti como se tivessem cuspido na minha cara."
Lembrando o orgulho que teve de apoiar no passado e participar na Web Summit, tal como muitas empresas israelitas, diz que agora tudo lhe parece "hipócrita". Não tinha consciência, por exemplo, de que haveria uma conferência no próximo ano no Qatar, país que financia a liderança do Hamas. E promete não voltar a participar nos encontros, mesmo se isso significar perder negócios. "Vou criar relações com empresas que têm moral. E isso é o mais importante para mim."
"Foi um choque, não conseguimos verdadeiramente respirar durante dois dias." Acordar a 7 de outubro em Portugal e ver os vídeos do que estava a acontecer no seu país é algo que continuar a ser indescritível para Yoni Engel. Os tios, Lili e Ram Itamari, uma professora reformada e um mecânico, vivam no kibutz de Kfar Azza, uma comunidade agrícola que foi alvo do Hamas. "Estiveram dados como desaparecidos durante três semanas, porque o nível de brutalidade foi tal que não conseguiram identificar antes os seus restos mortais. Mas a família não tinha esperança. A casa estava queimada, havia corpos no interior e a minha prima tinha estado a trocar mensagens com eles durante o ataque."
É através das notícias, mas também dos relatos que lhe enviam os pais, as irmãs, que segue agora a situação em Israel. "Quase todos os dias têm que ir para um abrigo por causa dos ataques", explicou, falando num nível de ansiedade tal que a mãe, de 82 anos, deixou de comer e perdeu dez quilos num mês. E seria pior sem o sistema de defesa aéreo: "Se não o tivéssemos, se calhar milhares de pessoas tinham morrido, porque os terroristas continuam a lançar rockets, e talvez ao nível da opinião pública já fosse mais aceitável", lamenta o vice-presidente de uma empresa no programa de inovação nacional.
No início, Yoni ainda pensou ir ter com os familiares, mas eles disseram-lhe para ficar em Portugal, para onde se mudou há três anos com a mulher. Na sua opinião, a guerra não mudou a perceção que as pessoas tinham de Israel, mas abriu as portas a que os sentimentos que já existiam ficassem livres para serem expressados. "Vemos os protestos, com cânticos violentos, não só contra Israel mas contra os judeus, e somos lembrados de que muitas pessoas pensam infelizmente assim. Sabemos que Portugal é muito tolerante, mas este extremismo está a espalhar-se. Respeitamos todas as religiões, mas os extremistas estão a levar isto para um ponto que torna desconfortável a coexistência."
Yoni tem 44 anos e explica que cresceu em paz, numa época em que Israel e o mundo árabe se aproximaram. "Nós tentámos coexistir, havia iniciativas para nos conhecermos mais, 20 mil pessoas iam de Gaza trabalhar em Israel", recorda. "Mas agora houve algumas destas pessoas que desenharam mapas para os que cometeram atrocidades. Eles sabiam onde ir. Como podemos voltar a confiar?", pergunta. O tempo é de guerra. "Ninguém escolheu esta situação, mas agora que existe, espero que se vá até ao fim na destruição do Hamas e se ponha fim à brutalidade, à falta de respeito pela vida humana", defendeu, admitindo que há dois meses era mais otimista. "As pessoas perguntam, porque é que não se sentam e falam e resolvem as coisas? Como é que podemos ter uma resolução pacífica com pessoas que têm uma mentalidade medieval. Que declaram abertamente que querem matar cada judeu do rio até ao mar? Com um grupo terrorista que é como o Estado Islâmico?"
Yoni é muito crítico das Nações Unidas, uma organização que considera totalmente falhada, e do secretário-geral, António Guterres, questionando, por exemplo, como o dinheiro da ONU e até a União Europeia está a ser gasto em Gaza. "Eles financiam escolas. Mas será que não estão a pagar para que a próxima geração de palestinianos cresça a odiar Israel? Penso que é preciso mudar a forma como a comunidade internacional lida com a ajuda ao desenvolvimento de Gaza"
Numa das paredes do escritório da advogada Simone Saul, na Baixa de Lisboa, estão os rostos de quase uma dezena de reféns que o Hamas levou no dia do ataque a Israel, o país onde não nasceu - é carioca pura do Rio de Janeiro - mas onde estudou e passou quase uma década da vida. E onde estava a passar uns dias de férias, a aproveitar as águas quentes a norte quando aqui em Portugal, onde vive, o outono já mostrava a sua cara.
"Estávamos num acampamento. Fomos acordados com mensagens do meu sobrinho de 15 anos, que tinha ficado em casa, e que dizia que estavam a soar lá as sirenes. O meu namorado viu o telemóvel e disse vamos voltar já", recorda a israelita de 55 anos. O caminho até casa, em Netânia, foi feito contornando povoações árabes. "Sabíamos que os terroristas tinham atravessado a fronteira, mas não tínhamos noção que eram uns dois ou três mil e o que estavam a fazer. Ficámos em choque o sábado todo." O seu voo de regresso a Lisboa era no dia seguinte. Simone voltou "de coração partido", queria ter ficado, mas tinha coisas para resolver cá. Na sua cabeça ainda ouve o silêncio do aeroporto, normalmente espaço de alegria.
Há mais de um mês que não dorme uma noite seguida. "O telemóvel dorme comigo na cama. E estamos sempre a verificar se aconteceu mais alguma coisa, se estão todos bem", explica, dizendo que engordou, voltou a fumar e ficou doente entretanto. Fala apaixonadamente da situação, revoltada com o que aconteceu não só em Israel, mas com que está a acontecer em Gaza. "O mais revoltante é Israel ter sido colocado na situação em que não lhe resta outra alternativa a não ser fazer o que está a fazer, sabendo que o preço é a vida das pessoas. Vidas com quem aquele governo louco do Hamas se devia preocupar. Se construíram tantos túneis, porque é que não põem lá as crianças? Porque é que a vida das crianças não importa tanto para eles como para nós?"
Simone admite que não quer que fique "pedra sobre pedra dos túneis e da estrutura terrorista do Hamas" em Gaza e que gostaria que isso fosse feito sem que mais civis morressem, mas é impossível. "Agora que já começaram, têm que acabar. Quero que encontrem os reféns, acabem com essa estrutura terrorista e depois ajudem a reconstruir, a colocar no poder alguém com quem se possa dialogar". Diz ansiar por um dia em que do outro lado da mesa estejam políticos e não terroristas com quem Israel possa negociar a paz. "Desde que estão entregues ao fanatismo religioso, ao extremismo, não há com quem falar. Porque eles não querem uma solução de dois Estados. Eles querem a destruição de Israel. Eles querem a morte de todos os judeus", insiste.
O sentimento é de "desespero", admite, porque ao mesmo tempo que se sente "violentada", está a ser "obrigada a estar numa situação em que está também a fazer isso aos outros". Mas, insiste, "é a tua sobrevivência, é a tua existência". E lamenta que as pessoas não consigam perceber e "não se importem" com isso.
Simone explica que não é fácil falar da situação em Portugal onde, a primeira imagem que muitas pessoas têm dela, é de uma mulher brasileira - é impossível esconder o sotaque. E apesar de ter orgulho de ser judia, dos seus costumes e tradições, de nunca o ter escondido de ninguém, essa sua outra identidade não é visível da mesma forma. "Portanto, Israel não surge na conversa." Ainda assim, admite que sente "na pele, na alma" o aumento do antissemitismo no mundo.
As manifestações a favor da Palestina preocupam-na por causa do que ouve das bocas dos jovens ligados ao Partido Comunista, "que tem uma postura completamente anti-Israel". Esses jovens "repetem como papagaios frases feitas", propaganda, não sabem História, não têm informação e conhecimento do Médio Oriente e "falam em apartheid e genocídio sem saber". Simone insiste que Portugal é país de "pessoas de um grande coração, de uma ingenuidade, até pureza, porque parece que a maldade nunca tocou aqui". Contudo, tem pânico que o país seja contaminado pelo ódio.
E chora todos os dias. Porque sente saudadas da família em Israel, que não pode visitar quando lhe apetece, porque se coloca na pele de uma das reféns cujo rosto tem na parede do seu escritório, uma jovem de 18 anos, e pensa no que deve estar a passar. Chora por ver o seu país a sofrer e por ver a solidariedade das pessoas lá dentro, que não sabe de onde vão tirar forças para superar isto. E repete o "never again" que se disse depois do Holocausto dos judeus às mãos dos nazis. Mas também chora pelos palestinianos, um "povo coitado" que está nas mãos do Hamas. "Eu sinto, sinto muito, e sofro. Há mais de 40 dias que não sou mais a mesma pessoa."
susana.f.salvador@dn.pt