Tempos negros para a primeira república negra
NO CÉLEBRE ROMANCE de Graham Greene Os Comediantes, que se passa na década de 1960 durante a ditadura dos Duvalier, as peripécias ao longo da fronteira do Haiti com a República Dominicana mostram uma realidade física que acompanha como se fosse uma coincidência a divisão política. De um lado, uma terra árida, quase despida de árvores, do outro uma floresta luxuriante, própria das Caraíbas. Passada ao cinema, com Richard Burton como protagonista, a história é filmada num outro país francófono, o africano Benim, em que Cotonou desempenha o papel de Port-au-Prince emprestada, e por isso as imagens de paisagens têm pouco valor testemunhal. Mas ainda hoje, um voo sobre a ilha de Hispaniola permite perceber sem grandes dificuldades onde está a linha imaginária que separa o terço ocidental, antiga colónia francesa, dos dois terços orientais, essa terra que já foi espanhola. A diferença é tremenda e explicada pela História.
O Haiti é uma espécie de pérola de França nas Caraíbas, para onde eram enviados milhares de escravos negros para trabalharem nas plantações da cana-de-açúcar. Pelo contrário, para uma Espanha que dominava as Américas desde a Califórnia e o Texas até à Terra do Fogo, a actual República Dominicana não passava de uma colónia periférica, desprovida de riquezas como o ouro ou a prata, e sem interesse económico. Nela se instalaram imigrantes vindos da Península Ibérica que se misturaram com os índios que sobreviveram às doenças trazidas pelos marinheiros de Cristóvão Colombo em 1492, quando desembarcaram na ilha. Escravos negros foram também trazidos de tempos a tempos, mas as plantações do lado espanhol eram menos e sobretudo menos exigentes. A coroa de Madrid podia esquecer-se deste domínio, a coroa de Paris, pelo contrário, precisava dos rendimentos do Haiti para sustentar o fausto da corte de Luís XVI.
Demorou algum tempo até que os ecos da Revolução Francesa, de 1789, chegassem às Caraíbas, mas para os escravos, que constituíam 85 por cento dos 700 mil habitantes do Haiti, o lema «Liberdade, Igualdade, Fraternidade» soava cheio de sentido. E de repente a força dos marons, os escravos fugitivos em revolta, torna-se tremenda, incitando os seus irmãos de raça a desafiarem os donos das plantações e lançando a destruição e a morte entre a minoria branca. Sob a liderança de Toussaint Louverture, ele próprio um ex-escravo, a revolta estende-se por toda a Hispaniola e, em 1801, o triunfo dos negros parece assegurado. No ano seguinte, Napoleão Bonaparte envia, porém, uma força expedicionária para disciplinar os rebeldes, mas os exércitos do imperador, tão temíveis nos campos de batalha da Europa, revelam-se impotentes no País das Montanhas, como é também conhecido o Haiti. E de pouco serviu a Napoleão ter entregue o comando ao seu cunhado Charles Leclerc: a vitória estava destinada aos revoltosos.
A INDEPENDÊNCIA do Haiti foi proclamada em 1804, a segunda nação das Américas a nascer depois dos Estados Unidos. Há quem também fale do nascimento da «primeira república negra», meio século antes de antigos escravos americanos fundarem em África a Libéria. Mas Jean-Jacques Dessalines, o novo líder, rapidamente se deixou tentar pelo poder absoluto coroando-se imperador antes de ser assassinado em 1806. Ficou célebre o seu ódio aos brancos e o seu desejo de ver a Constituição do novo país escrita num pergaminho feito de pele de um antigo dono de plantação, com a caveira deste a servir de tinteiro e o sangue derramado pelos escravos como única tinta. A forma bárbara como os brancos foram atacados chocou tanto a Europa como as Américas, com os Estados Unidos, que serviam de inspiração aos revoltosos haitianos, a assustarem-se de tal forma com o sucedido que aumentaram a repressão nos estados sulistas, prevenindo qualquer ímpeto de rebelião dos escravos aí existentes e que só seriam libertados com a presidência de Abraham Lincoln e a Guerra Civil de 1861-1865.
No Haiti, país pária durante todo o século XIX, a luta pelo poder prosseguiu imparável, com negros e mulatos a oporem-se e por vezes até a criarem dois países. Dessa época, em que tanto os Estados Unidos como as potências europeias se mantiveram propositadamente afastados do Haiti, destacou-se o período de governação de Pierre Boyer, que entre 1818 e 1843 conseguiu reunificar o país, mas promovendo a supremacia da elite mulata sobre as massas negras, falantes do crioulo, mistura de francês com línguas africanas e, do ponto de vista religioso, hesitantes entre o catolicismo dos antigos colonizadores e o vodu trazido do Daomé (actual Benim, cenário de Os Comediantes) e de outras zonas do golfo da Guiné pelos seus antepassados africanos. Mais do que qualquer outro ponto do novo mundo, o Haiti resistia então, como ainda hoje, como uma África situada do lado ocidental do Atlântico.
Decididos no início do século XX a transformarem as Caraíbas num lago americano (no sentido estrito), os Estados Unidos multiplicaram-se em intervenções militares nos países da região, incluindo Cuba e a República Dominicana. O presidente Theodore Roosevelt foi o campeão dessa política imperialista, ficando famoso pelo uso do cacete e da cenoura, mas foi Woodrow Wilson, em 1915, que ordenou a invasão do Haiti. O pretexto foi evitar novo conflito entre negros e mulatos e proteger as propriedades e investimentos americanos na ilha. Esse período de ocupação durou 19 anos, mas se a retirada militar ocorreu em 1934, o fim da tutela fiscal foi apenas em 1947. Dessa presença americana ficaram as infra-estruturas, feitas através de trabalhos forçados, é certo, um exército relativamente disciplinado e uma elite mulata instalada no poder.
NÃO TARDOU MUITO a que os governantes deixados no poder pelos Estados Unidos, quando Franklin Roosevelt ordenou a retirada das tropas, fossem afastados, e vários golpes militares ocorreram durante duas décadas até que, nas eleições de 1957, finalmente emergiu um líder forte. François Duvalier, formado em Medicina no Haiti e com estudos também numa universidade dos Estados Unidos, transformou-se no Papa Doc. Em tese, uma figura paternal que cuidaria do país como o médico de aldeia cuida dos seus pacientes, mas que na realidade emergiu como um ditador sanguinário capaz de torturar e matar quem ousasse criticá-lo. Conhecedor dos segredos do vodu e da sua influência sobre milhões de haitianos analfabetos, Papa Doc criou uma milícia chamada Tonton Macoute que espalhava o terror em nome do regime e permitia ao presidente limitar o poder das forças armadas, principal ameaça à sua governação. Dezenas de milhares de haitianos terão morrido às mãos dos tonton macoute, que gostavam de ser vistos pelo povo como mortos que tinham ressuscitado, fazendo parte da estratégia de mistura de terror político e crenças populares ligadas ao vodu.
Duvalier, que se proclamou presidente vitalício e fez questão de preparar o filho como herdeiro político, criou algumas instituições no país tentando dar a Port-au-Prince os edifícios habituais numa capital. Mas o seu regime tornou-se notório pela capacidade de desviar os dinheiros da ajuda internacional, com a pobreza a espalhar-se ao mesmo tempo que as contas bancárias da família presidencial cresciam na Suíça. Apesar de se ter feito eleger o campeão das massas negras pobres, pouco fez para melhorar as suas condições e novos bairros de lata em redor da capital continuaram a ser construídos por gente que fugia das zonas rurais onde nada existia, nem sequer árvores – pois a queima de madeira serve de principal combustível para o dia-a-dia. Mas se era ineficaz para resolver as velhas carências do Haiti, Duvalier mostrou-se sábio a extorquir apoio político e económico aos Estados Unidos, sobretudo depois de a revolução cubana de 1959 ameaçar uma maré comunista nas Caraíbas.
Pouco a pouco trocou o discurso da necessidade de apoiar a pobre república negra pelo de financiar o melhor dos bastiões anticomunistas. E se John Kennedy mostrou alguns escrúpulos em apoiar o regime do Papa Doc, já os seus sucessores deixaram-se levar pelo pragmatismo, tanto mais que nessa época de Guerra Fria as ditaduras de direita, como a de Trujillo, na vizinha República Dominicana, eram vistas pelos Estados Unidos como um aliado natural contra a expansão da influência da União Soviética.
Quando François Duvalier morre, em 1971, sucede-lhe o filho, Jean-Claude. Com apenas 19 anos, Baby Doc é o mais jovem presidente do mundo, mas a sua tentação não é a política, mas sim a vida de playboy que levava enquanto estudante de Direito. Contudo, o aparelho repressivo criado pelo seu pai, em especial a Tonton Macoute, e a rede de clientelas do regime permitiram que a segunda geração dos Duvalier no poder se aguentasse mais de uma década, sendo afastada só em 1986.
Alguns erros cometidos por Baby Doc, como o casamento com uma mulata com fama de caprichosa e a sua inabilidade para camuflar a diferença entre o seu estilo de vida faustoso e a miséria popular, levaram a que fosse crescendo a insatisfação entre os haitianos, que pouco a pouco iam perdendo o medo mesmo da terrível Tonton Macoute, sobretudo depois de em 1983 o Papa João Paulo II, numa visita, ter dito que havia mudanças a fazer no país. A revolta popular intensificou-se no Outono de 1985 e, em Fevereiro seguinte, Jean-Claude Duvalier fugia com a família, exilando-se nessa França que colonizou o país desde o século XVII, após um tratado com os espanhóis sobre a partilha de Hispaniola, mas que nos dois séculos de independência do Haiti nunca soube como relacionar-se com os francófonos das Caraíbas.
ELEITO PRESIDENTE em 1990, num ambiente de euforia popular e de esperança num futuro melhor, o antigo padre Jean-Bertrand Aristide resistiu pouco no poder. Os militares obrigaram-no a ficar nos Estados Unidos e, sob liderança do general Raoul Cedras, criaram uma junta que voltou a transformar o Haiti num pária internacional, submetido a todo o género de sanções. Cada vez mais pobres, os haitianos habituaram-se a emigrar, três milhões deles viverão hoje na República Dominicana, outros preferiram os Estados Unidos (em Miami existe um pétit Haiti) ou o Canadá. Boa parte daqueles que escolhem partir pertencem à elite económica e cultural, o que deixa o país desprovido de quadros. Um bom exemplo é a actual governadora-geral do Canadá, Michaelle Jean, cuja família deixou o Haiti em 1968 para fugir da ditadura dos Duvalier, que chegou a torturar o seu pai, um filósofo. Esta antiga jornalista mantém a ligação ao país de onde saiu com 11 anos e adoptou uma órfã haitiana, Marie-Éden.
Como no início do século XX, as tropas americanas voltaram a invadir o Haiti em 1994, desta vez para repor Aristide no poder e afastar os militares. Na presidência desde 1993, Bill Clinton reagiu às pressões para defender a democracia na América Central e Caraíbas nessa época pós-Guerra Fria e também ao problema da chegada de milhares de náufragos fugitivos haitianos à base americana de Guantánamo, em Cuba, hoje mais famosa por se ter transformado em prisão para militantes da Al-Qaeda.
A era Aristide prolongou-se até 2004, mesmo que entre 1996 e 2000 fosse um seu seguidor, René Préval, o presidente em funções. Mas o antigo padre católico, reeleito para um segundo mandato, desiludiu muitos dos seus apoiantes e foi obrigado também a partir num clima de revolta popular quando rebeldes, antigos soldados, se apoderaram de várias cidades e houve assassínios tanto de fiéis ao presidente como de opositores por parte dos seus apoiantes, que ainda hoje esperam que regresse do exílio na África do Sul, onde ensina numa universidade. Só em 2006 a democracia foi restaurada, com Préval de novo presidente, mas já sem a tutela do seu antigo patrono.
Com nove mil capacetes-azuis e dois mil polícias, a ONU tem feito tudo nos últimos anos para reconstruir o Haiti e evitar que se transforme num Estado falhado. Mas a natureza continua a ser implacável com a antiga colónia francesa, pois a aridez do terreno e a ausência de estruturas transformam em tragédia cada furacão que a atinge. Só em 2008 foram quatro, destruindo casas e fazendo centenas de mortos. Agora, o sismo de dia 12, que fez dezenas de milhares de mortes (números provisórios) e arrasou grande parte do país, incluindo o palácio presidencial, volta a obrigar a que tudo comece do zero.
E só a comunidade internacional, que sempre teve dificuldade em lidar com os herdeiros de Toussaint Louverture, pode ajudar a fazer do Haiti um país digno para os seus nove milhões de habitantes, que vivem num território que tem o tamanho do Alentejo mas é infinitamente menos verde. Até agora, a resposta tem sido positiva: aviões e aviões com todo o tipo de auxílio chegam dos Estados Unidos, da França e mesmo de Portugal. A esperança renasce nas pistas desse aeroporto meio destruído pelo terramoto mas que continua a funcionar. Como se chama o aeroporto? Toussaint Louverture.
Terramoto na Terra das Montanhas
Terra habituada a desgraças – da instabilidade política à pobreza da sua população passando por furacões e tempestades –, o Haiti viveu no dia 12 o seu pior sismo dos últimos 200 anos. O abalo de 7.0 na escala de Richter deixou a capital, Port-au-Prince, transformada numa grande vala a céu aberto, com os cadáveres a empilharem-se nas ruas ou a desfazerem-se debaixo dos escombros que só a ajuda internacional conseguiu levantar. Com epicentro a apenas 15 quilómetros da capital, o sismo teve ainda 28 réplicas, que acabaram de destruir edifícios como o palácio presidencial ou a sede da ONU. Para a organização, esta foi a pior tragédia de sempre, ultrapassando os 22 mortos no ataque terrorista contra as suas instalações em Bagdad, no Verão de 2003, que vitimou o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, enviado especial do secretário-geral. Agora, a força de pacificação das Nações Unidas, Minustah, também perdeu o seu chefe civil, o tunisino Heidi Annabi. Perante a dimensão desta catástrofe que voltou a tirar o Haiti do esquecimento – apesar dos cadáveres empilhados nas ruas da capital, os primeiros números de mortos não passavam de aproximações que se situavam nas dezenas de milhares –, o mundo mobilizou-se. Os Estados Unidos foram os primeiros a enviar equipas de socorro, navios e até um porta-aviões, além de o presidente Barack Obama ter anunciado o envio de cem milhões de dólares de ajuda. Europa e América Latina também contribuíram com alimentos, roupa, água potável e medicamentos. O esforço foi de todos para ajudar o país mais pobre das Américas que voltou a sofrer um rude golpe quando parecia estar no caminho da estabilização.
CRONOLOGIA
1492 – Cristóvão Colombo chega à ilha a que dá o nome de Hispaniola
1697 – Espanha cede o lado ocidental da ilha à França que lhe chama Haiti (Terra das Montanhas)
1801 – Na sequência da revolta dos maroons, o ex-escravo e guerrilheiro Toussaint Louverture conquista o Haiti, abole a escravatura e proclama-se governador-geral de toda a Hispaniola. Apesar dos esforços de Napoleão, o Haiti torna-se independente em 1804
1806 – Após o assassínio do autoproclamado imperador Jean-Jacques Dessalines, o Haiti divide-se entre o Norte negro e o Sul mulato
1915 – EUA invadem o Haiti após confrontos entre negros e mulatos. Só retirará as tropas em 1934.
1956 – O médico François Papa Doc Duvalier chega ao poder num golpe militar e é eleito presidente um ano depois. Em 1964, declara-se chefe do Estado vitalício
1971 – Papa Doc Duvalier morre. Sucede-lhe o filho, de 19 anos, Jean-Claude Baby Doc
1986 – Baby Doc Duvalier é forçado ao exílio
1990 – O ex-padre Jean-Bertrand Aristide é eleito presidente
1991 – Golpe do general Raoul Cedras afasta Aristide e motiva sanções dos EUA e da Organização dos Estados Americanos. A ONU juntar-se-á às sanções dois anos depois
1994 – Militares abandonam o poder devido a uma invasão americana. Aristide regressa
1995 – Força da ONU começa a substituir tropas americanas. Partido de Aristide vence legislativas, René Préval é eleito presidente
1999 – Préval declara o fim do mandato do parlamento e começa a governar por decreto.
2000 – Aristide eleito para segundo mandato presidencial não consecutivo
2004 – Celebrações dos 200 anos da independência marcadas pela violência. Revolta e linchamentos populares forçam Aristide ao exílio. No mesmo ano, cheias no Sul matam duas mil pessoas e três mil perdem a vida devido a um furacão no Norte. ONU envia capacetes-azuis
2006 – René Préval eleito presidente. ONU lança campanha para desarmar gangues
2008 – EUA e Banco Mundial anunciam trinta milhões de dólares em ajuda alimentar. Brasil envia mais capacetes-azuis. Série de furacões e tempestades mata quase mil pessoas. Em Novembro uma escola de Port-au-Prince desmorona-se com 500 pessoas no interior
2009 – Ex-presidente dos EUA Bill Clinton nomeado enviado especial da ONU para o Haiti. Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional cancelam oitenta por cento da dívida do país
2010 – Violento sismo faz dezenas de milhares de mortos