Tempo, mediação e reflexão
Tempo de livros. Quando se inaugura uma feira do livro abrem-se diversos temas de debate. Qual o futuro das livrarias e dos livreiros? O livro em papel impor-se-á ou deixar-se-á ultrapassar pelo digital? As pistas de reflexão são múltiplas e as conclusões são difíceis, uma vez que convergem fatores contraditórios. Estamos no centro da relevância da cultura. A difusão dos livros será um dos indicadores da importância da cultura, entre muitos outros. Aqui do que devemos cuidar é da leitura e da aprendizagem. A persistência do livro não oferecerá dúvidas se compreendermos que a memória é a matéria-prima mais importante de uma sociedade civilizada, entre diversas formas de comunicar. Desde o tempo em que os aedos transmitiam oralmente a poesia e a arte até à comunicação digital, há um conjunto vasto de instrumentos, dos copistas a Gutemberg, que devemos pôr ao serviço da cultura. Quem esquecer a memória tende a perder a consciência de que a criação tem lugar num permanente contínuo entre o que recebemos e o que transmitimos. E a leitura permite-nos estabelecer um diálogo vivo com os autores e as gerações que nos antecederam e aqueles a quem transmitimos o nosso testemunho e a nossa capacidade renovadora, suscetível de ligar tradição e modernidade, património e movimento. Seremos, assim, sempre, anões sobre gigantes, com a responsabilidade de criar valor acrescentado na evolução dos tempos.
No livro Personália (Tinta da China, 2021), José Pacheco Pereira revela-nos notas preciosas, capazes de fazer compreender que não estamos sós na História e que a aprendizagem se faz através do exemplo e da experiência. Nessa linha, o autor tem tido uma ação de grande importância na defesa da memória, designadamente através da sua biblioteca e arquivo, bem como dos blogues Abrupto e Ephemera, tendo-se dedicado à preservação de livros, periódicos, documentos e objetos ligados à memória da história contemporânea portuguesa. De facto, o amor aos livros significa o desejo de compreensão da humanidade e da civilização. Não há património cultural sem a consciência da importância do tempo. Num dos textos do citado livro, é recordada a visita da rainha Vitória aos soldados feridos, vindos "dos campos de batalha da Crimeia. Estes soldados eram dos Coldstreams, um regimento escocês criado no século XVII pela dureza dos seus soldados, tropas de fronteira, tropas de chão. É provável que os feridos que a rainha foi ver tivessem vindo da batalha de Inkermann travada em novembro de 1854, numa manhã de nevoeiro. Foi uma "batalha de soldados", batalha de infantaria, a mais cruel das batalhas, opondo ingleses e russos. O resultado foi inconclusivo, ninguém ganhou, as batalhas decisivas da guerra só se deram depois. A rainha Vitória, anotou no seu diário a impressão dramática que encontrou nos jovens amputados ou atravessados por tiros que os desfiguraram. A emoção da rainha foi genuína com especial preocupação com a situação dos jovens soldados. "Os que serão desmobilizados receberão pensões mínimas que não serão suficientes para viver". E a rainha prometeu fazer tudo o que pudesse, e "alguma coisa sabe-se que fez". Os acontecimentos históricos estão cheios de implicações contraditórias - e o gesto da rainha, quer ao visitar as vítimas, quer ao interessar-se pelo seu estado, quer ao preocupar-se com o seu futuro significa como a cultura está ligada à humanidade, à memória, ao reconhecimento da dignidade de todos, à compreensão da regulação dos conflitos, da legitimidade das instituições, da prevenção da paz, do reconhecimento dos direitos fundamentais, do respeito e da responsabilidade. A recordação do efémero permite ligar lembrança e democracia, não apenas como método de ação, mas como sistema de valores, que exige tempo, mediação e reflexão.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian