Trouxe consigo apenas a recordação. Nada mais. Nem sequer uma fotografia para ajudar a memória a não perder os detalhes. De todos os bocados de vida que deixou para trás ao fugir da guerra na Síria, aquele é o que mais lhe dói. Um quadro que tinha pendurado numa das paredes de casa. Foi pintado pelo pai e pelos irmãos. Nele, conta, "há um cavalo selvagem preso pelo pescoço que tenta libertar-se". Agressivo e desesperado no movimento. Um animal em fúria que luta pela liberdade para escapar à matança. "Nunca vi o sofrimento tão bem retratado em nenhuma outra obra", diz Andranik Chaushian, explicando que a pintura "retrata o genocídio arménio". Três gerações volvidas, as armas voltariam a empurrar o destino da família. Tudo começou durante a Primeira Guerra Mundial, quando os avós arménios foram obrigados a fugir do território da atual Turquia. A Síria acabou por ser o destino. Um século mais tarde, e também para tentar fugir à morte, Andranik pegou na família e partiu. Deixaram a vida que tinham em Qamishli, uma cidade no noroeste do país, junto à fronteira turca. Mas desta vez a fuga não foi para longe das raízes, mas sim para regressar a casa. Um retorno à mesma "mãe Arménia" que os antepassados tinham sido obrigados a abandonar..Matar para vender.Andranik deixou a Síria em 2011, pouco depois do início da guerra. Com o adensar do conflito, Qamishli tornara-se um local demasiado perigoso. As tensões entre a maioria curda e a minoria arménia sempre tinham existido, mas a convivência era agora um jogo sem regras. As ameaças chegavam de vários quadrantes. No complexo xadrez das alianças e inimizades na guerra civil síria, eram muitas as milícias, com ou sem filiação com o Estado Islâmico, que faziam dos cristãos um alvo a abater. A morte não era apenas uma consequência das balas, mas também um negócio. Matar para vender. As famílias que quisessem enterrar e dar descanso aos seus tinham de pagar aos carrascos para ter direito ao cadáver, conta Andranik. Vendo que os mortos se tinham tornado uma mercadoria, percebeu que tinha chegado o momento de partir..Apanharam um avião para Damasco e depois outro para Beirute. A capital do Líbano não lhes era uma cidade desconhecida. Por lá tinham familiares e negócios, no ramo da joalharia. Mas esse não seria o destino final. Na alma batia mais fundo o desejo de regressar a casa. "Há muito que tínhamos a ideia de voltar à terra mãe, mas nunca se tinha proporcionado. Quando constróis uma vida e tens o teu trabalho ficas muito ligado ao sítio onde estás, mesmo que seja uma terra estrangeira", conta. A guerra acabou por ser o bilhete de partida de que precisavam.. Mesmo que, até então, a concórdia tivesse sido a regra e que a comunidade arménia mantivesse um nível de vida acima da média, Andranik confessa que sempre existiu um clima de tensão. "Os curdos ajudaram os turcos no genocídio. É verdade que na Síria vivíamos juntos e em paz e eles tratavam-nos por tios, talvez pelo sentimento de culpa. Mas foi sempre uma relação frágil. Quando os arménios foram para aquela zona por causa do genocídio quase não havia curdos, mas hoje são a maioria. E haverá sempre problemas entre os dois grupos. Basta pensar que há territórios que nós consideramos arménios, que hoje façam parte da atual Turquia, e que eles reclamam para o Curdistão." A família de Andranik é apenas uma entre milhares que fugiram de casa para regressar à terra. As estatísticas dizem que antes do deflagrar da guerra civil seriam entre 70 mil e 100 mil os cidadãos de ascendência arménia a residir na Síria. O início do conflito em 2011 veio alterar este cenário. Hoje a comunidade arménia em território sírio não deverá ultrapassar os 15 mil. De acordo com dados fornecidos ao DN por fontes diplomáticas oficiais, a Arménia abriu as portas a 22 mil sírio-arménios e Nagorno-Karabakh (território de maioria cristã e arménia, autoproclamado independente e situado no interior das fronteiras do Azerbaijão) recebeu cerca de 30 famílias. Não se consideram refugiados de guerra. Nem sequer deslocados. Sentem-se em casa. Entre os seus. Entre aqueles que viram o nascimento dos seus avós. Deixaram a terra onde sempre viveram para criar raízes na terra com que sempre sonharam. Muitos outros, no entanto, apenas "utilizaram a Arménia como um país de trânsito, até conseguirem mudar-se para outras regiões onde têm familiares e onde há mais oportunidades", explica ao DN Armine Aleksanyan, ministra adjunta dos Negócios Estrangeiros de Nagorno-Karabakh. "Apesar da nossa grande vontade de ajudar, infelizmente não podemos oferecer muito em termos económicos", acrescenta a mesma responsável..Sabores da Síria em Erevan.Em setembro de 2012 a situação tornou-se insustentável. Estavam confinados ao bairro onde viviam, de maioria arménia, no centro de Aleppo. Quase não saíam de casa. "A minha filha tinha seis meses e passava os dias a chorar. Não havia luz nem combustível para os aquecimentos", recorda Hagop Azelian em conversa com o DN, sentado a uma das mesas de um dos seus dois restaurantes em Erevan, a capital da Arménia, onde serve especialidades sírias.. Decidiram partir. De madrugada, em dois carros diferentes, ele, a mulher, a filha, o pai, a mãe e a irmã fizeram o caminho até ao aeroporto. As estradas eram perigosas. Os atiradores escondidos podiam atacar a qualquer momento. Graças a um amigo, conseguiram subir a bordo de um avião que partia dali a poucos minutos para Damasco. No dia seguinte, embarcaram para Tbilisi, na Geórgia. "A partir daí foi uma vida nova." Era o adeus à Síria de Hagop, nascido em Aleppo, em 1986, quase oito décadas depois de o avô, originário de Kilis, na atual Turquia, ter assentado raízes na cidade em 1919. Agora era preciso recomeçar do zero. Para trás deixava duas oficinas especializadas na produção de aço e componentes metalúrgicos. Antes da guerra chegaram a empregar 200 pessoas. Para Hagop, o regresso à Arménia não foi imediato. Antes ainda se aventurou no Dubai, onde vive a irmã, abrindo um negócio de exportação e importação na área da mecânica. Mas aos poucos o emirado situado no golfo Pérsico foi-se tornando desconfortável. Não lhe agradava viver entre crenças e preces diferentes das suas. "Talvez por tudo o que passei na Síria, não suporto ouvir Allahu akbar. Mexe comigo. Na escola da minha filha e no nosso prédio havia muitas nacionalidades. Como ela é mulher, não queria que viesse a crescer no meio de tantos muçulmanos", admite Hagop. "Não gosto de árabes nem de países árabes", acrescenta.."É preciso povoar o país".Depois de dois anos no Líbano, Andranik sentiu que estava na hora de concretizar o regresso à "mãe Arménia". Mas não queria mudar-se para Erevan. Preferia fazer do retorno algo com mais significado. Optou por Nagorno-Karabakh, com o intuito de "ajudar na construção do país". Para ilustrar o porquê da decisão socorre-se de estatísticas demográficas: os dois países são muito semelhantes em termos de área, mas enquanto o Líbano tem seis milhões de habitantes, Nagorno-Karabakh fica-se pelos 150 mil. "É preciso povoar o país", sublinha.. Armine Aleksanyan conta que, quando a Arménia começou a abrir as portas àqueles que queriam fugir da guerra na Síria, a população de Nagorno-Karabakh expressou de imediato a vontade de também ajudar. "Através das redes sociais, alguns ativistas locais deram início a uma campanha oferecendo casas que tinham pertencido aos seus avós e que estavam vazias. Infelizmente não foram muitos os que escolheram vir", diz a ministra adjunta. "Mas aqueles que vieram trazem mudança, o que é muito bom para nós", sublinha Aleksanyan. Andranik chegou há quatro anos. Começou por trabalhar numa fundação que dá apoio a famílias numerosas. Foi numa das deslocações de trabalho que, em Erevan, conheceu a mulher, cuja família é originária de Talish, uma povoação no Nagorno-Karabakh junto à linha de contacto com o Azerbaijão. Prometeu-lhe que a levaria de volta às raízes. Hoje vivem em Aghavno, uma aldeia a 60 km de Stepanakert, onde vivem 57 famílias. Ganha a vida numa central elétrica como trabalhador especializado na área metalúrgica. Têm três filhos e o quarto está a caminho. Ohan, avô de Andranik, nasceu e cresceu em Sasun, atual Turquia. Um lugar que faz parte da história e do folclore arménio. Sasun é o cenário de uma epopeia literária que conta a história de David e outros rebeldes que combateram a ocupação árabe. Situa-se numa zona que faz parte do ancestral império e que também é conhecida por Arménia Ocidental. Ohan fugiu de uma terra que já deixara de pertencer à nação arménia. Os seus bisnetos vão crescer numa terra que sonha voltar a pertencer à Arménia. Ironias da história de uma família. Quatro gerações ligadas pela guerra. E por um cavalo em revolta que só existe na memória de quem o viu pendurado numa das paredes lá de casa.