"Temos um terço de novos eleitores que são um desafio para a democracia chilena"
Quase 50 anos depois do golpe de Pinochet, os chilenos deram uma maioria à extrema-direita para reescrever a Constituição herdada da ditadura. Porque é que acha que isso aconteceu?
O Chile é um país que se caracterizou, ao longo da sua história, por procurar mecanismos institucionais - e quando isso não aconteceu teve custos importantes - para solucionar os conflitos que existem na sociedade. Foi assim com a explosão social do ano de 2019, que na prática gerou um processo institucional onde, transversalmente, o mundo político se pôs de acordo para gerar as condições de responder às exigências da cidadania. Já tinha sido assim na recuperação da democracia, em 1990, quando houve forças políticas que empurraram para a realização de um plebiscito. Que gerou uma transição pacífica para a democracia.
Mas a minha questão prende-se com o facto de os eleitores darem à extrema-direita, aquela que até nem queria reescrever a Constituição, a capacidade de o fazer...
Tenho a impressão que o que aconteceu no Chile é fruto da necessidade, como ocorre noutras partes do mundo. Parte dos desafios da democracia é que o poder político tem que ler da melhor maneira o que acontece com a cidadania. Penso que o processo que se criou com este processo constitucional, e que acabou por ser rejeitado numa primeira etapa no ano passado, é parte importante disso. O que procura a cidadania é que haja uma resposta àquelas exigências que têm a ver, principalmente, mas não exclusivamente, com os direitos sociais, com garantir uma casa para que as pessoas possam desenvolver os seus projetos de vida e o seu projeto de comunidade.
Mas, insisto, há pouco mais de um ano o Chile estava a celebrar a tomada de posse do presidente progressista Gabriel Boric. E agora já estamos no lado oposto do espetro político...
Eu acho que a mudança é menos pendular do que se pensava, porque há um elemento novo que é preciso ter em conta. Há quatro milhões de novos eleitores no Chile. Nós passámos de um sistema eleitoral de voto que era voluntário, onde havia uma inscrição nas listas eleitorais mas as pessoas podiam decidir ir ou não votar, ao voto obrigatório. Então, desde o ano passado até agora, tivemos quase quatro milhões de novos eleitores. Isso supõe, também, novas exigências que provavelmente não são tão novas, mas que se comportam de maneira distinta. Acho que uma das coisas importantes no futuro do Chile será responder a isso, à dinâmica destes novos eleitores que, durante muitos anos, quando o voto era voluntário, se mantiveram à margem dos processos eleitorais. Em 12 milhões de eleitores, estamos a falar de um terço de novos eleitores que são um desafio para a democracia chilena. Daí que penso que é menos a discussão do caráter pendular que pode haver na sociedade chilena, e mais a necessidade de entender, com maior claridade, o que está por detrás das exigências da cidadania, que penso que é o desafio que enfrentam hoje as democracias no mundo, que é ter um melhor diálogo com a cidadania.
O anterior projeto de Constituição, que foi chumbado em referendo, tinha sido redigido por um grande número de independentes e foi considerado progressista. Acha que as mudanças que procurava eram demasiado radicais?
Não me corresponde como secretária de Estado dizer se o projeto era radical ou não. O que posso dizer é que o procedimento foi democrático e as pessoas decidiram livremente se aprovavam ou não o texto. E o importante é respeitar os procedimentos democráticos.
O novo texto será de também sujeito a referendo, em dezembro...
Exatamente. Será um novo processo e novamente os cidadãos do Chile vão ter que decidir se esse texto constitucional, que lhes será apresentado após a discussão durante os próximos meses, é o adequado ou não. Mas, em qualquer caso, eu penso que o desafio do Chile está ligado, mais além do texto constitucional, à criação de um mecanismo que responda às exigências da cidadania. Em especial em matéria de direitos sociais, de democracia e institucionalidade, que garantam no fundo a discussão e a participação das pessoas.
O presidente estava dependente da mudança na Constituição para aplicar uma série de medidas do seu programa. Não tem maioria no Parlamento, não conseguiu, por exemplo, aprovar a reforma tributária. Ainda tem capacidade para fazer as mudanças que queria?
Eu penso que sim. O que é muito importante é gerar as condições e a vontade de diálogo. Um exemplo, a reforma das pensões que é um dos eixos estruturais do governo de Boric é parte de uma agenda que não é apenas deste governo. Há dez anos, pelo menos, que no Chile se discute a reforma das pensões. Então, quando não se produz esta reforma, não é o governo que fica em problemas, é o mundo político em geral que não tem a capacidade para responder às exigências da cidadania. Logo, penso que o desafio hoje em dia é encontrar maiorias alargadas e isso requer muito diálogo político quando não se tem maioria. Não é para levar avante o programa de governo, não se trata disso, trata-se de responder às exigências da cidadania.
Quais são as prioridades agora?
Penso que tanto a reforma tributária como a reforma das pensões continuam a ser parte importante da agenda, assim como a reforma da saúde.
Mas a reforma tributária já falhou uma vez, correto?
Sim, mas era o que dizia. Não acaba a necessidade de fazer a reforma. O que acontece é que tem que ser de uma maneira distinta, dialogando com uns e com outros, contando as maiorias necessárias. Mas, evidentemente, uma reforma tributária é importante para poder financiar um pacote de medidas sociais, seja as que forem previstas através de um texto constitucional ou uma lei. Mas é importante gerar condições para as poder financiar.
O presidente Boric esteve em Brasília num encontro sobre integração regional. Essa é também uma aposta do Chile?
Nós acreditamos na integração em múltiplas dimensões, tanto económicas como políticas. É uma parte importante do futuro do Cone Sul e da América Latina em geral. Por isso participamos em todas as instâncias que promovem essa integração, porque esta promove não apenas os valores democráticos, como fortalece o comércio num país pequeno como o nosso e o intercâmbio com outros países. E isso fortalece também os próprios interesses nacionais. A integração é uma agenda que para o Chile vai ser sempre prioritária.
Boric é dos poucos presidentes de esquerda críticos da situação na Venezuela ou na Nicarágua...
Penso que a nossa política externa, e o presidente é o condutor da política externa, tem sido muito coerente. Somos defensores, desde o nosso país e em organismos internacionais, da democracia e da defesa dos direitos humanos. Ainda mais agora como membro do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. São princípios básicos para nós. Acontece, por exemplo, no caso da Ucrânia.
O Chile apoia a Ucrânia contra a invasão da Rússia?
Somos um dos poucos países da América Latina a fazê-lo. De facto, o presidente Boric já falou com o presidente Zelensky, o nosso parlamento também já teve uma reunião com ele, tudo através de videoconferência, claro. Justamente em defesa desses princípios, da soberania dos estados, da colaboração humanitária que o nosso país prestou e que nos parece fundamental, e em cada declaração que o Chile pode fazer em órgãos multilaterais também o que fez foi condenar fortemente a invasão.
No próximo semestre vai haver a cimeira CELAC-União Europeia. Também é importante para o Chile a aproximação à União Europeia?
Nós estamos a ponto de assinar o acordo de associação com a União Europeia, precisamente porque nos parece que, do nosso ponto de vista como país, mas também regional, procurar mecanismos de entendimento com a União Europeia é chave. A nossa relação com a Europa foi sempre fundamental.
E com Portugal, como estão as relações?
Viemos agora para as consultas políticas do mecanismo que existe entre os dois países a nível bilateral, para a revisão das agendas de colaboração. Portugal é um país que, para nós, é muito importante. O Chile é o país que recebe o segundo maior investimento de Portugal no Cone Sul, o primeiro é o Brasil. Portugal também tem sido muito generoso com o Chile, por exemplo a propósito dos incêndios que tivemos no verão. Foi um dos países que correu rapidamente para colaborar connosco e estamos a trabalhar numa agenda a propósito destes fenómenos e da crise climática. Coincidimos com Portugal na necessidade de uma transição energética, isso parece-nos chave, no hidrogénio verde, na possibilidade de exportar o lítio. E também, outra coisa na qual coincidimos, é na agenda feminista, particularmente em política externa. Penso que é um imperativo democrático hoje em dia entender que a igualdade de género não é só o número de mulheres, mas a igualdades substantiva no âmbito económico. Elas são as mais afetadas, por exemplo, devido à crise climática. E depois há também os desafios de fundo, os nossos sistemas políticos e democráticos.
Como assim?
Nós assinalamos os 50 anos do golpe de Estado e, para o ano, Portugal assinala os da Revolução dos Cravos. A nossa comemoração focou-se em três conceitos, que diria que são chave: memória, democracia e futuro. Porque entendemos que é impossível repensar ou pensar a democracia hoje em dia, os desafios que temos, se não aprendemos com as experiências traumáticas do passado. Coincidimos com Portugal nisso do passado, de construção da memória. E não podemos pensar neste temas, sem também projetar no futuro. E isso cruza-se com todos os desafios que têm hoje os sistemas políticos.
Acha que não houve a construção da memória no Chile?
Tivemos o reconhecimento a respeito da violação dos direitos humanos, sobre prisão política e tortura. Mas a memória é um exercício permanente. E penso que temos a obrigação, pensando nas futuras gerações, de nunca esquecer e de revisitar o que aconteceu para que não volte a acontecer.
É possível um novo Pinochet no Chile?
Eu espero que não, como espero que nenhuma democracia tenha que atravessar muitas experiências traumáticas que atravessaram muitos países da América Latina e também da Europa durante o século XX. No século XXI dizemos a essas experiências que "nunca mais" e pensamos que uma democracia é o melhor sistema que garante direitos para todos.
susana.f.salvador@dn.pt