Temos médicos suficientes em Portugal? Diz que sim, mas não chegam
O primeiro-ministro António Costa criticou o poder regulatório excessivo de algumas ordens, especialmente a dos médicos, por limitar o acesso à formação. Declarações que levaram a Associação de Estudantes de Medicina (ANEM) e a Ordem dos Médicos a reagir. Afinal, quem determina o número de vagas dos cursos de Medicina? E há ou não médicos suficientes em Portugal? Algumas perguntas, respostas e números sobre a situação no país.
Portugal é o terceiro país da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) com maior rácio de médicos per capita. Existem, atualmente, 4,6 médicos por cada mil habitantes, o que coloca Portugal à frente de países como Alemanha e Reino Unido. Contudo, se analisarmos o número de médicos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS), a média desce para os 2,8 médicos por cada mil habitantes, abaixo da média dos 28 países da União Europeia (3,6).
O número de profissionais inscritos na Ordem dos Médicos situa-se próximo dos 45 000, mas, de acordo com o Relatório Social do Ministério da Saúde (2017), apenas 28 609 médicos estão a trabalhar no SNS em Portugal.
"Existem médicos em Portugal, mas, na prestação de serviços de saúde à população através do SNS, existe, de facto, uma carência. Os médicos existem, mas não estão, tendencialmente, no SNS", diz Vasco Mendes, presidente da Associação de Estudantes de Medicina (ANEM). Uma opinião partilhada por Catarina Perry da Câmara, coordenadora do Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI): "Não temos falta de médicos em Portugal, temos é uma distribuição que não é equitativa. Uns estão no público, outros estão no privado".
Maria do Céu Machado, professora catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), reforça: "Não há falta de médicos no país. Há falta de médicos é no SNS". Segundo a ex-presidente do Infarmed, os profissionais "reformam-se, vão para os privados e para fora de Portugal e a substituição não é feita na mesma medida". Mesmo que entre um número razoável de médicos no primeiro ano de um determinada especialidade, "não é a mesma coisa que substituir alguém mais velho, com experiência clínica e de uso de tecnologias". Considera, por isso, que não é um problema de números. "Tem de haver planeamento com base na fase da carreira em que os médicos se encontram".
Surgem com alguma frequência notícias da falta de médicos para assegurar urgências, da carência de médicos de família em algumas zonas de país, da escassez de profissionais em determinadas especialidades. Catarina Perry da Câmara considera que a perceção da falta de médicos no país "pode estar relacionada com o facto de não termos médicos de família para todos os portugueses e com a realidade com que as pessoas se deparam quando vão ao hospital público". Além disso, prossegue, "essa ideia é transmitida frequentemente nos meios de comunicação social e nas declarações públicas de algumas pessoas".
Mas "a perceção das pessoas está errada". O que existe, diz a presidente do CNMI, "é uma distribuição não equitativa dos médicos, tanto geograficamente, como em relação ao SNS".
António Costa criticou recentemente a Ordem dos Médicos por limitar o acesso à formação, considerando que tal impede a resposta às carências do país. De seguida, a Ordem reagiu, acusando o primeiro-ministro de confundir o seu papel, com declarações "incompreensíveis, factualmente erradas e que enfermam em problemas conceptuais que importa clarificar".
Quem define o numerus clausus nos cursos de Medicina é a Direção-Geral do Ensino Superior, na dependência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
No que diz respeito à formação pós-graduada, ou seja, no acesso à especialidade, a Ordem dos Médicos determina a capacidade formativa dos hospitais para receber médicos internos. Desta forma, a Ordem emite um parecer que, no entanto, não é vinculativo. É a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) quem publica as vagas da especialidade.
Esta segunda-feira, o Ministério da Saúde esclareceu que iniciou uma auditoria à formação médica especializada do SNS, contrariando as afirmações da Ordem dos Médicos, que disse que propôs há dois anos ao ministério a realização desta auditoria, mas a tutela não chegou a avançar. No dia em que a Ordem iniciou o processo de auditoria externa independente para avaliar a atribuição de idoneidades e capacidades formativas para a formação especializada dos jovens médicos, o Ministério da Saúde emitiu um comunicado, no qual revela que iniciou um auditoria no dia 19 de julho, que está a ser realizada pela consultora Ernest & Young.
O objetivo da auditoria é clarificar os procedimentos de atribuição de idoneidade e capacidade formativa aos serviços e instituições, mas também deverá servir para identificar eventuais constrangimentos no procedimento, permitindo melhorá-lo e clarificar se a capacidade formativa está devidamente aproveitada.
Os ingressos nos cursos de Medicina em Portugal mais do que duplicaram nas últimas duas décadas, passando de cerca de 600 vagas em 1999 para mais de 1.500 no último ano, de acordo com os dados da Ordem dos Médicos, que considera que este aumento "tem levado a uma maior insatisfação no terreno com a qualidade da formação, seja pela limitação das infraestruturas físicas, seja pela dificuldade de resposta em termos de tutoria e ensino clínico prático, uma vez que os quadros mais experientes do SNS têm saído do setor público, seja por aposentação ou para setor privado, social e estrangeiro".
Segundo os dados da ANEM, o rácio médio nacional é atualmente de um tutor para 8 estudantes podendo variar entre um tutor para um estudante como um tutor para 18 estudantes em certos estágios hospitalares. "Quando maior o rácio, maior a insatisfação dos estudantes, porque aprendem menos e contactam menos com os doentes - o ensino é tendencialmente pior", diz Vasco Mendes, destacando que formamos cerca de 15,1 médicos por ano por cada dez mil habitantes. "Somos o segundo país da OCDE que forma mais médicos. Não precisamos de formar mais médicos".
É que depois do curso, os médicos ainda têm anos de formação pela frente, já nos hospitais, para serem especialistas.
Uma percentagem significativa dos candidatos não têm vaga para a formação especializada, o que faz com que centenas de médicos recém-formados ficam sem acesso à formação médica especializada todos os anos - aos que terminam os cursos em Portugal juntam-se ainda os candidatos que fizeram curso no estrangeiro.
No ano passado 676 médicos ficaram sem vaga no internato médico. Um número que este ano deverá subir, de acordo com as estimativas da Associação de Médicos pela Formação Especializada, que calcula que sejam perto de 1200 os médicos a ficar sem acesso a uma vaga. Restam-lhes três opções: "Repetir a prova, trabalhar como tarefeiros [médicos indiferenciados] ou emigrar". Por isso, reitera Vasco Mendes, "é necessário adequar o número de estudantes às capacidades formativas das escolas médicas".
Nos últimos anos várias unidades privadas receberam idoneidade formativa para formar jovens médicos, mas o número de internos em formação no setor privado ainda é reduzido. O Hospital CUF Descobertas e o CUF Infante Santo foram as primeiras instituições privadas a receber médicos internos, o primeiro nas especialidades de imunoalergologia e otorrinolaringologia e o segundo em otorrinolaringologia, o que lhes permitiu, desde 2012, começar a formar especialistas nessas áreas. Tal como o DN noticiou em 2018 existiam 12 internos nos hospitais CUF.
Maria do Céu Machado não é a favor do numerus clausus. Para a professora da FMUL, a forma de entrada na faculdade não devia ser feita unicamente com base na média do ensino secundário e nas notas dos exames nacionais. Este sistema, critica, faz com que "jovens com perfil para ser médicos fiquem de fora" e com que "entrem outros que não era aquilo que queriam".
À semelhança do que já acontece em alguns países, nomeadamente nos EUA, a professora catedrática defende que o ingresso nos cursos de Medicina seja feito, por exemplo, com um exame abrangente - que avalie os conhecimentos nas mais diversas áreas - e que seja avaliada também a cultura humanística e ética dos candidatos. "Isso levaria a que os jovens não entrassem na faculdade porque não têm perfil para ser médicos e não porque lhes falta uma décima na média", justifica.
Para resolver o problema da distribuição geográfica dos recursos médicos, há quem defenda mais incentivos. No Alentejo e no Algarve, por exemplo, é muito difícil fixar médicos. Já na região de Lisboa e Vale do Tejo, existe uma enorme carência de especialistas em Medicina Geral e Familiar. No início do ano, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, disse que "sem uma verdadeira política de incentivos", o país "não vai conseguir resolver o problema das regiões mais periféricas e desfavorecidas" e passará a ter "doentes de primeira e doentes de segunda".
A legislação em vigor prevê que os médicos que se desloquem para as regiões mais carenciadas tenham direito a um vencimento superior em 40%, mais dois dias de férias, maior facilidade de mobilidade para os conjugues e a possibilidade de participação em projetos de investigação clínica. Para Miguel Guimarães, é necessário reforçar os incentivos que já existem e acrescentar outros, nomeadamente benefícios fiscais e mais dias de férias. Além disso, considera que é importante ter equipamentos nas unidades de saúde "mais de acordo com a prática da medicina atual" e "oferecer aos jovens médicos projetos de trabalho em que possam desenvolver uma determinada área da medicina fundamental para os doentes das comunidades onde trabalham".
O presidente da ANEM, Vasco Mendes, diz que é difícil para um médico ter uma vida no Porto durante mais de 30 anos e depois deslocar-se para Bragança. "Mas se em vez de ir uma semana para Bragança, puder ir dois ou três dias da semana e passar os restantes num sítio onde consiga aprender técnicas com chefes mais velhos, que me possam ensinar as técnicas mais vanguardistas, ficaria contente", sugere, destacando que é uma forma de ter autonomia e, ao mesmo tempo, exercer num hospital mais central. Desta forma, explica, seria também mais fácil conciliar a vida social e familiar com a profissional. Por outro lado, este representante propõe que os médicos tenham contacto desde cedo com o interior do país, para que conheçam a realidade e se interessem pelas regiões mais carenciadas.
Catarina Perry da Câmara defende que é necessário também "melhorar as condições de trabalho no SNS", para o tornar mais competitivo. "O bastonário tem visitado hospitais e as condições em alguns são bem piores do que as pessoas têm a perceção. Desde não existir material suficiente para trabalhar a médicos com demasiadas doentes. Há situações de consultas a cada 10 minutos, o que torna impossível trabalhar com qualidade".
Para fixar os médicos no SNS é necessário dar-lhes oportunidades que eles não têm no privado. E quais são? "Investigação e carreira académica", defende Maria do Céu Machado. Se for dada essa possibilidade, a professora catedrática acredita que será mais fácil atrair os médicos para o serviço público. Ao mesmo tempo, defende, os concursos de contratação (para ocupar vagas de especialistas) "não podem demorar anos como acontece e não podem basear-se apenas na média do exame do internato". O facto de o concurso ser feito apenas de acordo com a média faz com que os hospitais mais exigentes se arrisquem a perder internos que formaram e que já dominam as tecnologias para receber outros com médias mais altas que não estão por dentro das dinâmicas.
Por fim, Maria do Céu Machado sugere que o conteúdo curricular e a forma como são dados os cursos de Medicina sejam repensados. "Os cursos de Medicina ainda são muito focados em hospitais". Embora já tenham uma parte de medicina preventiva, a pediatra considera que a formação ainda é muito virada para os grandes hospitais, o que faz com que os jovens médicos fiquem formatados para trabalhar apenas nesses locais.
Este mês, a ministra da Saúde admitiu a possibilidade de pagar mais aos médicos que se dediquem em exclusivo ao SNS, mas salientou que isso deve ser uma opção e não uma imposição. "Estamos a estudar de que forma uma opção pela dedicação plena se poderia materializar, em termos de impacto financeiro, de quem abranger", afirmou Marta Temido após a no final da sessão de apresentação do Relatório da Primavera 2019 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde.