"Temos de mostrar à África francófona que o francês é uma língua recebida como herança, mas também língua de futuro"
O presidente Macron esteve em março em visita a África - Gabão, Angola, Congo Brazzaville e República Democrática do Congo - depois de muitos anos de foco mais securitário, França vira agora a sua política em África mais para os negócios?
O que é certo é que há uma vontade das autoridades de reequilibrar a presença francesa nos países africanos. Em 2017, o presidente Macron já fizera um discurso, no início do primeiro mandato, em Ouagadougou, em que traçava uma série de objetivos. E declarara a sua vontade de fazer evoluir a abordagem francesa na relação com os países africanos no sentido de uma maior parceria. O discurso que o presidente Macron fez no início de março, pouco antes da sua 18.ª visita a África - em pouco menos de seis anos - confirmou este desejo. O que nos parecia era que a visibilidade da França nos países africanos era quase exclusivamente militar, por razões que conhecemos, de instabilidade de alguns países, sobretudo de África Ocidental, que tinham pedido ajuda internacional, uma presença de manutenção da paz. E os franceses responderam a esse pedido. Mas isso teve como inconveniente apagar, ou dissimular, a riqueza da relação que a França tinha desenvolvido com esses países e por todo o continente africano. Trata-se de uma vontade de reequilibrar as coisas. Não quer dizer desligar-se de África, incluindo no âmbito militar. Mesmo se o fim da operação Barkane é efetivo há já uns meses. França, se lhe pedirem, ficará militarmente presente em África. Seja no âmbito nacional, seja, como é nossa preferência, num quadro europeu, ou num quadro internacional. Gostaríamos, sim, de colocar a tónica também em todas as outras dimensões das nossas relações com os países africanos - económica, claro, mas também cultural, trabalhar com os jovens, com a sociedade civil, com as associações, as ONG.
O presidente Macron tem falado do fim da Françafrique....
Já tinha falado disso em 2017, muito claramente.
O fim, ou mudança, das operações militares em África é uma forma de contrariar uma certa má imagem da Françafrique?
É uma forma de acompanhar a evolução, em primeiro lugar, dos países e das sociedades africanas, de estar mais próximo do que os jovens - e todos sabemos que África é um continente muito jovem, com um forte dinamismo demográfico - querem, escutar melhor o que dizem as populações africanas sobre a relação que querem connosco e dar uma resposta de certa forma mais interativa, mais cooperativa, mais de parceria. Por outro lado, França foi alvo de campanhas muito fortes de desinformação num certo número de países africanos, em geral, países onde estava presente há muito tempo, antigas colónias da África francófona. Campanhas de desinformação, não sejamos ingénuos, que foram instrumentalizadas e preparadas, apoiadas por certos segmentos da população naqueles países. Isso agravou-se. E deu a imagem de uma França apenas presente no plano militar, porque se esqueceram de dizer que França estava presente sempre a pedido do país em questão. Sempre num quadro internacionalmente claro, nunca de forma unilateral. E portanto, deu a França uma sobre-responsabilidade em situações políticas, sociais ou económicas que são em primeiro lugar da responsabilidade dos dirigentes daqueles países. Há o desejo de clarificar este ponto para as populações e opiniões públicas daqueles países africanos. Mas acho que também há uma verdadeira vontade dos franceses de melhor dar a entender o porquê do nosso interesse por África. Temos diásporas africanas numerosas e importantes em França, que são muito ativas, muito dinâmicas. Também elas muitas vezes muito jovens, e é importante ter este diálogo, esta ponte com os países de origem dos pais ou dos avós. Temos a ajuda pública ao desenvolvimento que continua a ser uma prioridade na política externa francesa. Isso tem um custo. E é importante que os franceses saibam para que é usado esse dinheiro, qual o interesse de continuar a gastar e a estar presentes na ajuda pública internacional, a ajudar este ou aquele país, este ou aquele sector. Tudo isto faz parte de uma visão de conjunto que tinha desaparecido um pouco atrás da presença militar.
Falou em cooperação cultural, a restituição de obras de arte às antigas colónias francesas é essencial para deixar para trás o peso do passado e avançar para um novo nível na relação entre França e estes países?
Sim, penso que um eixo muito forte desta nova abordagem em parceria é revisitar em conjunto com as ex-colónias a história partilhada e o património e fazê-lo de uma forma normal, acompanhando essas restituições de um trabalho conjunto, para ter museus ou locais de exposição e de armazenamento que preservem a integridade destas obras. É muito importante e é simbolicamente muito forte porque cria novos tipos de cooperação, não tradicionais. É também uma forma de virar a página. Começámos com o Benim, houve restituições ao Ruanda, e agora o presidente da república considerou que chegou a hora de enquadrar no plano jurídico estas restituições. E anunciou uma futura lei-quadro, que será apresentada ao parlamento para as enquadrar da melhor forma.
O futuro da francofonia vai passar por África. França tem uma estratégia para manter o francês como língua de poder e negócios nestes países em grande expansão demográfica?
Março foi o mês da francofonia no mundo. Estima-se hoje que haja 321 milhões de falantes de francês no mundo. Mas em 2050 esse número terá mais do que duplicado. Haverá então mais de 700, 750 milhões de falantes de francês. E destes, 60% serão africanos. É uma aposta muito importante para a língua francesa. Faz parte dessa nossa história partilhada esta língua francesa, que alguns países africanos mantêm como língua oficial, ou como uma das línguas oficiais. É importante continuar a trabalhar juntos nisto. Com os jovens, prioritariamente. Como língua de ensino ou como língua estrangeira, uma segunda língua materna. França vai receber a próxima cimeira da Organização Internacional da Francofonia (OIF) em 2024. Esperamos receber novos membros, plenos ou observadores. Entre eles Portugal. Ficaremos muito felizes de receber Portugal, que cumpre todos os critérios a priori, como membro observador, uma vez que França é já membro observador da CPLP. Temos de fazer este trabalho: mostrar que o francês é ao mesmo tempo para os países da África francófona uma língua recebida como herança pelos jovens, mas é também uma língua de futuro, de oportunidade para os negócios, que permite viajar,... É uma língua de que cada um se deve apropriar a nível nacional e individual. Não pode ser uma língua imposta ou obrigatória.
O presidente Macron incluiu Angola na sua visita a África. França tem interesse na África lusófona e mesmo anglófona?
Sim. Da mesma forma que Portugal reabriu há pouco uma embaixada na Costa do Marfim, também nós consideramos que não há motivo para nos limitarmos, para apenas termos em conta a África francófona. Em primeiro lugar, África não é um todo uniforme. Em relação aos países africanos, qualquer que seja a sua História, se houver oportunidades de âmbito económico, cultural, das trocas, não nos proibimos de responder a pedidos, necessidades ou oportunidades. Angola era uma visita que já tinha estado prevista e fora adiada por causa da pandemia. Era para ter sido em 2020, aconteceu agora. Entretanto a situação internacional evoluiu, sobretudo com a invasão russa da Ucrânia que teve como uma das suas consequências as questões de segurança alimentar. Logo, a deslocação do presidente Macron a Angola acabou por ser muito centrado nessas questões, também na reestruturação da agricultura angolana. Porque a Agência Francesa para o Desenvolvimento desbloqueou um empréstimo de 200 milhões de euros para Angola, para acompanhar e tornar duradouras as transformações agrícolas do país. E no plano político, o presidente Macron quis apoiar os esforços do presidente João Lourenço, por exemplo, com a RDC, para acalmar as tensões e conflitos na RDC. Tudo isto tornou o perfil desta visita muito atual, mas de forma geral, o presidente da república já visitou muitos países de África não francófonos. Esteve na África do Sul, na Nigéria,. Não há motivo para se limitar. O que queremos é trabalhar em parceria com os países africanos, mas também com os parceiros europeus. E Portugal é um dos parceiros óbvios, na medida em que tem também um forte interesse no continente africano.
Falou de influências estrangeiras nas questões de segurança. Quando a influência da Rússia e da China - vamos chamá-las pelos nomes - avança em África, é ainda mais importante que a UE tenha uma estratégia articulada e comum para o continente africano?
É essencial. Há muitas narrativas artificiais a circular por isso é preciso lembrar que a UE, no seu conjunto, é o primeiro parceiro comercial dos países africanos, é o primeiro investidor também. O conjunto da ajuda pública para o desenvolvimento da UE aos países africanos chega aos 65 mil milhões de euros. Há este grande projeto de global gateway, que é estruturante para as relações futuras entre a UE e África. Aqui também há 300 mil milhões de euros potencialmente colocados à disposição dos países africanos - para projetos específicos, com critérios importantes, de durabilidade e de democracia também. Essa é a realidade. Depois podemos contar histórias, podem criar-se artificialmente oposições e um novo choque de civilizações entre o Norte e o Sul, ou entre um Sul global e - já não se diz o Norte agora, já está ultrapassado - o Ocidente. Mas tudo isto é uma narrativa, é propaganda - temos de ser claros em relação a isso. E, como a UE bem percebeu e repete, não é verdade. E sobretudo é perigo. Gera conflitos, gera divisões. O mundo não precisa disso neste momento, há dificuldades suficientes, conflitos abertos, para que estejamos a criar divisões artificiais. Portanto, a UE tem de estar presente. E em França partilhamos da preocupação de Portugal de que o Sul não seja esquecido. No contexto atual, a UE está a dar uma ajuda maciça e coordenada à Ucrânia face à Rússia, mas isso não pode eclipsar o resto. Portugueses e franceses estamos atentos a isso em todas as discussões europeias, na atribuição de meios, nos fundos. Não podemos desertar o terreno da cooperação com o Sul e em especial com África.
Olhando agora para o Norte de África, qual a relação da França com os países do Magrebe, sobretudo a Argélia, com a qual tem uma história longa e conturbada?
Houve vários momentos importantes nos últimos meses entre os dois países. O mais recente foi uma chamada telefónica entre o presidente Macron e o presidente Tebboune, que permitiu resolver um certo número de mal-entendidos recentes. O presidente argelino anunciou o regresso do embaixador da Argélia a Paris, depois de ter sido chamado a Argel. Estamos agora num momento em que as relações retomam de forma correta. Mas, e é isso que a torna tão interessante e rica, esta é uma relação que é tudo menos fácil. É uma relação complexa mas muito próxima. Com populações de origem argelina em França, que são francesas mas continuam a ir muitas vezes à Argélia ver a família. Há um fator humano que é muito importante entre os dois países. E os jovens argelinos hoje talvez conheçam menos a França do que os pais ou os avós. É preciso trabalhar a pensar no futuro, sobretudo nos jovens.
Como é que a diplomacia francesa em África se enquadra na visão francesa do mundo, num momento em que a guerra na Ucrânia provou que a NATO afinal não está em "morte cerebral" - como disse o presidente Macron - e que a UE consegue estar unida e forte?
Esse foi um dos erros de cálculo de Vladimir Putin. Conseguiu não só unir os países da NATO como até que a aliança se alargasse. Essa é uma das consequências desse ato brutal da invasão da Ucrânia. Uma grande constante da diplomacia francesa é que continuamos empenhados no multilateralismo, no universalismo da presença francesa. Continuamos a ter uma rede diplomática e consular das maiores do mundo porque queremos estar em todo o lado onde é útil estarmos. O facto de reinvestir e reequilibrar as nossas parcerias com os países africanos não nos impede, em primeiro lugar, de continuar a ter uma visão ambiciosa da UE. Nas questões de segurança e defesa, para nós continua importante que a NATO e a UE se coordenem da melhor forma, que sejam complementares. Já vimos que em situação de crise como a da pandemia, a UE consegue sair do seu perímetro, mesmo se no início há sempre um momento em que temos de nos ajustar. No final é a solidariedade que vence, um forte voluntarismo político que caracteriza a construção europeia. A saúde não era uma área comunitária, em que as coisas estavam estruturadas e organizadas. Mas mostrámos que, face a uma crise sem precedentes, fomos capazes - e nenhuma outra organização regional do mundo é capaz de fazer o mesmo - de nos concordar e de sermos mais fortes juntos do que cada um no seu canto. Por outro lado, França quer continuar a dialogar com todos os países do mundo. A diplomacia não é só falar com os amigos, é manter as amizades mas falar com os que não são nossos amigos. E sem querer necessariamente colocar na China no campo dos adversários, o presidente Macron esteve lá no início de abril e penso que é importante lá ir. Vemos que a Rússia e a China falam, mesmo se não estão de todo alinhadas na questão ucraniana, ao contrário do que certas narrativas querem fazer acreditar. Mas há tensões que reaparecem no mar do sul da China. É importante ir lá, passar a mensagem. Vivemos um momento de grande eruptividade, de grande fragilidade, por isso cada um tem de se mostrar responsável. A China é um dos membros permanentes do Conselho de segurança da ONU e, como tal, tem grande responsabilidade. Portanto, temos de estar presentes, de tomar a iniciativa mesmo quando é complicado. E - esta é também uma constante da diplomacia portuguesa - procurar sempre aliados. Sozinhos não podemos fazer muito coisa, por isso temos sempre de procurar alianças e aliados para sermos mais fortes.
A UE não está condenada a ter de escolher entre os dois grandes blocos liderados por China e EUA?
As questões internacionais são demasiado complexas para as simplificarmos dessa forma. É preciso ter cuidado. A UE, para mim, é um modelo. Para os jovens pode ser difícil de perceber. Para os que nasceram com o euro, para quem fazer Erasmus é óbvio, atravessar fronteiras sem pensar é normal. Mas é preciso perceber que não é normal... e não é irreversível. É preciso cuidar desse privilégio, estar vigilante e ir sempre mais longe. Sei que fica bem muitas vezes ser negativo - dizer que era melhor antes ou que podia ser melhor agora - , mas a verdade é que a UE é um feito extraordinário a nível histórico.
helena.r.tecedeiro@dn.pt