"Temos de escolher que tipo de velório vamos dar à TV aberta"
Era uma das novelas mais aguardadas, mas Na Corda Bamba, da autoria de Rui Vilhena, na TVI, perde face à história líder SIC - Nazaré tem em média mais cerca de 500 mil espetadores diariamente. Em entrevista ao DN, Rui Vilhena aponta o dedo à estação de Queluz de Baixo por estes resultados e insiste que tem um produto que seria apreciado em qualquer parte do mundo.
O argumentista, que esteve até há pouco tempo ligado à gigante produtora brasileira Globo, diz não estar a passar culpas, mas aponta erros de programação e promoção da obra. Críticas que intervalam com elogios ao diretor-geral de Entretenimento e de Programas da concorrência, Daniel Oliveira.
Entre os livros e a mesa de trabalho que instalou na sala de casa, Rui Vilhena, de 58 anos, olha ainda para o estado da televisão aberta - que diz estar em "cuidados paliativos" -, para as novas plataformas, para o Brasil do presidente Jair Bolsonaro e para a dividida classe artística do país a o nível político e o futuro.
Muito aguardada, a novela Na Corda Bamba não está a conseguir impor-se no horário, o que se está a passar?
Essa novela é muito específica em temos de qualidade. Quem já assistiu, vê que tem uma qualidade extremamente superior, com um elenco de luxo e uma história boa. Parece uma série da Netflix. O que se está a passar é que há um senhor na concorrência que se chama Daniel Oliveira, que é muito eficaz e que faz o seu trabalho de casa. A TVI está a passar por uma turbulência e não é segredo para ninguém. Em Corda Bamba não há problema, é mais o problema com o que o que se está a passar com o canal. É um produto que tem tudo para ser um sucesso, e se não é, alguma coisa não está a correr bem... não estou a passar a culpa a alguém.
O que se está a passar?
Há um conjunto de fatores. Quando fiz Ninguém Como Tu [2005] foi dito na época que seria a última tentativa da TVI na ficção para combater a SIC, que estava à frente com uma novela da Globo [Senhora do Destino] como a mais vista. Foi-me dito que se não resultasse, não iriam investir mais em ficção. Entretanto, havia uma estratégia do José Eduardo Moniz [então diretor-Geral da TVI] para inverter a perda: a novela começava logo a seguir ao Jornal Nacional e cinco minutos antes da concorrência, não havia publicidade. E o que se passa com Na Corda Bamba desde o dia em que se estreou: a 15 de setembro? Ela começa 15 minutos depois de a concorrência já ter estreado, com publicidade entre o jornal e a novela. Corda Bamba é a novela certa no horário errado. Estou a comparar as duas novelas que fiz para esta casa e que estavam na mesma situação. Naquela época foi feita uma estratégia, agora não está a haver.
Mas agora foi convidado por José Eduardo Moniz [então consultor de Conteúdos de Entretenimento e Ficção da TVI e agora na produtora Plural].
Sim, por ele. Mas ele não está a programar. Naquela época, era o responsável pela TVI, hoje não é. Agora, o Daniel fez o seu trabalho de casa muito bem, ele sabia a novela que ia enfrentar, preparou-se e ele é que está certo.
Está a dizer que a nova direção de Programas da TVI, agora nas mãos de Felipa Garnel, não está a fazer as coisas bem?
O que estou a dizer é que, se em termos de estratégia, a concorrência está a vencer, então estão a fazer um trabalho mais bem feito.
Então, que conversas tem com a direção de Programas da TVI?
Não há conversas.
Estão zangados?
Não. Nunca me zanguei com ela [Felipa].
Então, o que se passa?
Enviei emails antes de a novela se estrear sobre o marketing da produção que, como se sabe, começou uma semana antes de arrancar. Dois meses antes, a D. Palmira do café já sabia o que era Nazaré [novela concorrente da SIC]. A minha novela ficou sem título 200 mil anos. Isto é um erro. Eu olho hoje para a SIC e vejo que a estratégia que usam é a da Globo.
Disse que Corda Bamba junta Tempo de Viver e Avenida Brasil. As pessoas podem ter visto já essas histórias...
Quando leio colegas seus, jornalistas, a dizerem que gostam da novela X porque não precisam de pensar, isso é muito preocupante. Se as pessoas gostam de novelas que não precisam de pensar, definitivamente eu não vou ter trabalho: não sou esse autor, nem quero ser. Gosto de provocar emoções, de cutucar, xingar, que reflitam sobre o que estão a ver. É curioso que os homens gostam muito do que eu escrevo e falam que voltaram a ver novela, a ver aquele humor negro, ácido, cáustico. Eu não acordei e decidi criar uma coisa completamente nova e vou arriscar. Não. Aquilo que está a ali é um produto que tem tudo para ser um sucesso, se não é, alguma coisa que não está a correr bem...
O Rui quer ir para a SIC?
Veja bem, eu não sou SIC, não sou RTP, não sou TVI, não sou BBC, eu sou ficção. Vou onde posso realizar um bom trabalho.
A TVI está a impedi-lo de realizar um bom trabalho?
A TVI deu-me as ferramentas para fazer um excelente trabalho, veio uma equipa da Globo, temos um elenco de luxo, temos uma série que pode ser apresentada em qualquer lugar do Mundo, que é uma grande mais-valia para a ficção portuguesa em termos de fotografia, de qualidade. Temos uma boa história. O que não resulta?
Diga-me o Rui...
Nada na TVI hoje resulta. Não é porque a novela não resulta, ela está no pacote. Mas se se está a perder, é preciso ser mais agressivo. Em Ninguém Como Tu resultou ao contrário...
Há alguma indicação da parte da TVI de acabar esta novela antes do tempo?
Não. Não.
Isso pode vir a acontecer?
Tudo é possível, mas não estou a ver esse cenário.
Está de saída de novela?
Não. Jamais farei isso com a minha equipa, com os atores, com o público que está a acompanhar a novela. Se se assumiu o compromisso, continuarei a dar o meu melhor até ao fim.
E o fim é quando?
São 200 capítulos. Já estou a escrever a segunda temporada. Continuo a dar o meu melhor. Repare: a TVI tem dois programas no seu top ten, o jornal e a novela, logo, está a sair-se bem. A TVI foi, durante muitos anos, o canal mais visto, vence quem está a fazer o melhor trabalho. Ponto.
Falou com o Daniel Oliveira?
Não. Gosto muito dele, conheço-o há muitos anos. A trajetória do Daniel é muito importante para todos nós - independentemente de ser RTP, SIC ou TVI - porque é uma inspiração em todos nós. A vida dele dava um telefilme. Ele esteve à porta do canal ainda adolescente a pedir trabalho, chegou lá, virou aquilo. Como não admirar uma história como o da Oprah, do Obama, ou como não admirar a história do Daniel.
Ligou-lhe? Pondera dizer-lhe 'quero trabalhar consigo'?
Não tenho razão nenhuma para ligar. Quando nos encontramos socialmente falamos, somos pessoas que nos conhecemos. Quando estamos todos juntos, não há rivalidade, damo-nos todos bem. Não tenho nada contra os autores da SIC ou da RTP ou da TVI, somos todos amigos.
Está arrependido de ter aceitado este convite?
Se eu soubesse que a novela cairia numa transição de direção de Programas, como aconteceu já comigo na TVI, eu teria esperado. Mas sei que tenho um produto de qualidade que vai ser muito bem aceite lá fora. A novela é muito vista no Brasil. Vejamos, o que me preocupa como profissional do audiovisual? A televisão aberta está a morrer, está em cuidados paliativos. Nós que trabalhamos e fazemos televisão temos de decidir se vamos resgatar os migrantes que foram para a outras plataformas para, de alguma forma adiar a morte da TV aberta, ou quem sabe ressuscitar - o que seria um trabalho complicado - ou escolher que tipo de velório vamos dar a a TV aberta: vamos acelerar a morte ou vamos, pelo menos, dar-lhe uma morte digna. Temos de analisar porque é que o público a está a abandonar.
Sim, há muito menos gente a ver TV aberta, mas nem todo o público abandonou. A SIC cresceu.
Claro que abandonou. Abandonaram a TVI, a SIC, a Globo, a CNN, a ABC porque as novas plataformas chegaram, e a TV aberta tem de se reinventar. As pessoas migraram porque procuram produtos melhores, mais bem produzidos, mais curtos. A forma de ver TV mudou. Temos de produzir tão bons quanto os da concorrência: Netflix, HBO.
No que dependa do trabalho que tem em curso, como antecipa a chegada da Cofina à TVI?
Ao contrário do que alguns coleguinhas de profissão possam achar - que dizem que sou presunçoso -, a verdade é que querer fazer uma coisa boa, se isso criar condições para que se possa apresentar um bom produto, então sou bastante presunçoso. A minha preocupação é ter boa ficção em Portugal. Fico feliz quando vejo um bom produto, quando Portugal ganha um Emmy. Não torço contra, torço sempre a favor. Mas tenho sempre de torcer a favor da qualidade, a mim não me interessa nivelar por baixo porque eu não sou esse tipo de autor.
No Brasil, o seu contrato com a Globo terminou. Como está esse processo?
A Globo já passou por isto que vivemos em Portugal. Acabaram os contratos de exclusividade com os autores e agora há mais trabalho por obra e, por isso, temos vários profissionais da Globo a viver cá e que vão ao Brasil fazer uma obra e regressam. As portas estão abertas, foi muito bom.
Esperava que estes anos na Globo tivessem sido diferentes [fez a novela Boogie Oogie e tem um projeto proposto parado]? Estava à espera de ter outra velocidade na produtora?
A Globo funciona de outra maneira. Os projetos ficam engavetados porque eles escolhem e seguem uma estratégia, e se ela é outra da história que se apresenta o projeto fica em espera, é muito normal. Mas hoje, analisando friamente, gosto de trabalhar por obra porque a pessoa é livre para ir onde quiser. Os contratos de exclusividade dão segurança financeira, por outro lado não seria possível apresentar projetos noutras plataformas.
Como olha para a decisão recente de Jair Bolsonaro [presidente do Brasil] relativamente à não assinatura do diploma que confere a entrega do prémio Camões a Chico Buarque?
Preciso de comentar? É triste, que mais posso dizer...
Crê que a ficção brasileira possa mudar na nova era de Bolsonaro, em que sentido?
A ficção está em constante mutação, é como a moda. É óbvio que a situação política, económica e social afeta sempre a sua produção ficcionada porque ela é o espelho - e falamos de novelas urbano -contemporâneas - do dia-a-dia. Todos esses fatores afetam a trama.
Quais os riscos que antecipa como autor, como guionista?
Vai depender da causa que determinado autor abraçar. Se for isento, que deveria ser - como o jornalista - ele anda na rua, escuta as pessoas e reflete isso mesmo na sua história. Se não for isento, ele vai por a sua verdade dos factos na sua escrita. Até agora, quer na Globo ou a Record - que não tenho visto -, tudo me parece na normalidade. Talvez o teatro seja mais ativo que a televisão, porque creio que ela não se quer comprometer. Se o canal ou ator assumir um lado, correm o risco de ver uma debandada de público por retaliação. Eu não gostaria de correr esse risco por questões políticas. Posso passar o meu recado subtilmente de outra forma sem correr esse risco, um autor inteligente consegue fazê-lo.
Como autor, era desafiante trabalhar numa altura destas no Brasil? E em que sentido?
Ai, com certeza. Para já, a classe artística no Brasil está completamente dividida. Há os petistas (PT) e os bolsonaristas, houve, durante a campanha, uma enorme lavagem de roupa entre a classe artística, o que tem sido mau. Foi barra pesada. Sempre que há mudanças, esta classe é a a que mais sofre porque é a porta-voz do que se está a passar. O cinema e o teatro têm uma voz mais militante, são os primeiros a sofrer. Agora, sou muito feliz aqui. Sou português, a minha família vive aqui, gosto do estilo de vida europeu, das esplanadas, de beber vinho branco e comer as minhas amêijoas. E isso é que é vida.
Mas esteve os últimos anos no Brasil e não dizia isso.
Veja bem, adoro o Rio de Janeiro, mas identifico-me mais com o estilo de vida aqui. Adoro São Paulo, é muito cosmopolita. Por outro lado, o Rio de Janeiro é um imenso balneário, tem uma cultura praiana muito intensa e que São Paulo não tem. Adoro praia, não consigo viver sem ela, mas não dá para tudo.
Relativamente ao Brasil e enquanto cidadão, quais são as suas maiores preocupações?
São com o planeta terra todo. Estamos a viver um tempo em que parece que a História não serviu para nada. Nada.
O quê em concreto?
Falo do regresso da extrema-direita na Europa, parece que as pessoas não percebem que estamos num continente que se autodestruiu duas vezes. Que alguém inventou a União Europeia para deixarmos de nos matar uns aos outros. Todos se odeiam outra vez. O Trump no poder é bastante preocupante. Bem, a melhor coisa de se ver na televisão hoje em dia é o The White House reality show(reality show da Casa Branca), não há reality, não há novela melhor do que esta. Até tem ganchos, está tudo lá. O Brexit é igualmente preocupante. Somos muitos, o Planeta está a rebentar pelas costuras, mas ninguém vai a lugar nenhum. Ou metade vai embora ou aprendemos todos a viver em conjunto.
Por onde começar a mudar?
A única forma de os unirmos todos era haver um inimigo exterior com o qual todos lutássemos contra. Não vejo como resolver e preocupa-me. Veja bem, tenho 58 anos. Quando tinha 12 ou 13 anos e houve a descolonização em Angola, Moçambique, eu estava no Brasil, era adolescente e as famílias recebiam outros familiares, que se dividiam entre as casas. Todos nós fizemos a nossa parte para ajudar. E lembro-me de um senhor de 70 e tal anos, de uma família riquíssima que chegou ao Brasil com uma mão à frente e outra atrás. Ele tinha trabalhado a vida inteira, fez fortuna e passou, de repente, a depender da caridade alheia. Estou com 58 anos e vejo o caminho que a Europa parece estar a tomar, com o Trump a ganhar as eleições, vejo o Brexit e penso: 'será que apesar de tudo o que conquistei poderei vir a ser aquele homem de 70 e poucos anos?' Claro que me assusta. Os europeus esquecem-se que já fomos, alguma vez na História, refugiados. Então, karma is a bitch. É incrível, mas não aprendemos com os nossos erros.