"Temos agora a possibilidade de uma grande mudança política" nos Estados Unidos da América

Margaret O'Mara é professora de História na Universidade de Washington, colunista do The New York Times e autora dos livros Cities of Knowledge, Pivotal Tuesdays e The Code: Silicon Valley and the Remaking of America.
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No ano de todas as decisões, os democratas vão nomear Joe Biden na sua convenção a 17 de agosto, em Milwaukee. No entanto, a pandemia de covid-19, que continua descontrolada nos Estados Unidos, obrigará a um evento muito pequeno ao qual os delegados não são encorajados a ir. Como é que isto afetará a campanha do homem que se propõe tirar Donald Trump da Casa Branca? Margaret O'Mara, professora de História na Universidade de Washington, autora de vários livros e que no início de carreira trabalhou na Administração de Bill Clinton, acredita que a pandemia terá um grande impacto. Mas não da forma que prevemos.

Uma convenção democrata pequena por causa da pandemia de covid-19 terá impacto na energia em torno de Joe Biden?
Há algumas coisas que tornam a ausência de uma convenção nos formatos tradicionais não muito problemática. Uma é que Joe Biden vai ser o candidato, não há surpresas. Nos últimos 50 anos, as convenções foram mais eventos televisivos do que pontos de tomada de decisões. Estes eventos recebem muita atenção mas na verdade já não decidem nada. Isso faz que não haver uma grande convenção seja inconsequente. A oportunidade de toda a gente se juntar certamente injeta energia nas pessoas. Por causa da cobertura televisiva, quando os partidos fazem convenções os candidatos recebem um salto positivo nas sondagens. O nomeado faz um discurso e outras personalidades falam sobre o nomeado e isso é uma boa oportunidade de dominar o ciclo noticioso, algo que Joe Biden tem alguma dificuldade em fazer.

Mas o elevado reconhecimento de Biden mitigará a falta de visibilidade de uma convenção?
Sim. Se não fosse tão claro que ele era o nomeado seria mais importante. Este ano é extraordinário e Trump é um oponente muito invulgar. Parte disso é a sua capacidade de dominar completamente o ciclo noticioso. A campanha dos democratas neste ano é tanto correr contra Donald Trump como correr a favor de algo. As vitórias presidenciais dependem de os eleitores se convencerem de que este candidato vai melhorar a sua vida. Mas a antipatia para com Trump e a crescente frustração com o falhanço da administração ao endereçar a pandemia e o falhanço económico fazem que correr contra Trump seja suficiente. O que Biden está a fazer é não entrar em grandes detalhes sobre os seus planos, para lá de prometer muitas mudanças. Em 2020, talvez seja só isso que precisa de fazer. É uma lição de 2016: Hillary Clinton tinha propostas detalhadas para tudo e ainda assim a eleição foi sobre personalidade e aspetos emocionais e não pragmáticos, porque Trump é alguém que inspira emoções intensas, positivas e negativas.

A presença de Bernie Sanders numa convenção não seria importante para captar o eleitorado progressista?
Ajudaria, e o facto de que Bernie está a falar como apoiante de Biden também ajuda. As convenções podem ter um papel a galvanizar os eleitores para votarem nos candidatos, mas são uma peça de uma estratégia maior. A estratégia maior é porem na rua uma operação para levar as pessoas a votarem, que atinge o pico nas últimas seis semanas da campanha. É bater às portas, mobilizar as pessoas, garantir que têm folhetos nas portas, cartazes nos quintais, garantir que vão às mesas de voto. Esse é que será o grande desafio imposto pela pandemia.

E isso porque os democratas têm mais medo da pandemia do que os republicanos?
Se as pessoas não saírem de casa para ir votar, isso será mais vantajoso para os republicanos do que para os democratas. As operações dos democratas no terreno são feitas em bairros de minorias, da classe trabalhadora, pessoas cujas circunstâncias de vida tornam mais difícil que votem regularmente, e em zonas onde tem havido esforços para suprimir os votos, como purga dos inscritos e eliminação de locais de voto. Os democratas têm trabalhado muito para tentar mitigar isso e aumentar a inscrição de eleitores, mas numa situação de pandemia não dá para recrutar voluntários e mandá-los de porta a porta nem fazer eventos com o candidato. Ainda assim, penso que vamos ver uma base democrata muito motivada e gente disposta a ir para a fila e votar, porque estão tão empenhados em impedir a reeleição do presidente.

Portanto, não há risco de abstenção em massa?
Tivemos confinamento e uma pandemia severa e ainda assim houve milhões de pessoas a marchar pelas ruas no último mês. Talvez se fosse um ano de eleição menos enérgico, em que as pessoas não estivessem motivadas por um ou outro candidato, então a pandemia levaria a ficar em casa. O que temos agora é uma base democrata muito energizada e focada em remover Trump. Não temos um vácuo de entusiasmo. Se a abstenção for maior, será por causa das medidas que foram tomadas para dificultar o voto.

De que forma?
Os legisladores republicanos têm trabalhado muito para suprimir eleitores afro-americanos. Isto não é uma afirmação parcial, é uma afirmação factual. Há um reconhecimento de que quanto mais fácil for para as pessoas negras acederem a locais de voto mais difícil será para os republicanos ganharem, em particular no sul. Aqui, os brancos historicamente suprimiram os eleitores negros desde a reconstrução, nos anos 1870. Os brancos do sul estavam afiliados com o partido Democrata e isso mudou nos anos 1960, porque este se tornou o partido dos direitos civis.

Os protestos após a morte de George Floyd terão influência em pessoas que não costumam votar?
Penso que sim. A abrangência e o envolvimento de tantos brancos nestes protestos por justiça racial é reminiscente do movimento dos direitos civis nos anos 1960. É um paralelo importante: organizadores negros e participação de brancos, que trazem para a corrente principal esta questão do racismo sistémico. Isso dá espaço a Joe Biden para ser muito progressivo em questões raciais.

Porque não terá receio de alienar os seus apoiantes brancos?
Sim, entre os cálculos que os políticos têm de fazer para serem eleitos por causa do ridículo que é o colégio eleitoral, que é antidemocrático e tem de ser abolido. Digo isto como historiadora política, é um artefacto de elitismo do século XVIII. A eleição vai resumir-se a algumas centenas de milhares de pessoas nalguns estados. É uma demografia muito reduzida.

O facto de o presidente Trump estar disposto a organizar grandes comícios mas a campanha de Biden não, por causa da covid-19, quanta diferença fará?
Trump está a seguir a mesma estratégia que lhe deu a vitória, que é ir atrás de uma base muito forte. O que o beneficiou em 2016 - e que não tem agora - é que recebeu muitos votos de pessoas que não gostavam de Hillary Clinton. Havia também o efeito da novidade. Os eleitores votam pelo candidato da diferença, porque querem que as coisas mudem e melhorem. Desta vez, Biden é o candidato da mudança. Trump tem sempre a sua base, mas ninguém será convencido a votar nele por causa dos comícios. Os próprios apoiantes de Trump não sabem se querem ir a grandes eventos agora. A vantagem de Biden ser um centrista que desaponta muitos progressistas democratas é que estar "no meio da estrada" levará pessoas que tipicamente votam nos republicanos a votar nele. Muitas pessoas estão cansadas do caos e da loucura.

Que outros fatores terão influência?
A economia é sempre um grande fator nas eleições presidenciais. No fim de tudo, resume-se à questão se as pessoas sentem ou não que o seu futuro económico é seguro e está a ir na direção certa. Ficaria muito surpreendida se a economia americana recuperasse de forma tão significativa que seria suficiente para Trump a usar como sucesso na campanha. Espero que as coisas melhorem, mas dado o trajeto do coronavírus e a nossa resposta a ele, não vejo isso a acontecer. Isso vai remover um fator poderoso que poderia ter convencido os indecisos a votarem em Trump. Se olharmos para os incumbentes que perderam - Herbert Hoover em 1932, Jimmy Carter em 1980 e George H. W. Bush em 1992 - foram os únicos presidentes modernos que não conseguiram a reeleição.

Tudo por causa da economia?
Há sempre um conjunto de coisas, mas a economia foi a mais importante. O que os três têm em comum é que a economia estava má. Esse padrão histórico é um enorme problema para Donald Trump. Agora, estamos a quatro meses da eleição. Foi um ano muito agitado e não dá para prever muita coisa, mas os padrões históricos mostram que as pessoas sentiram que a economia está bem faz a diferença entre reeleger um presidente ou escolher outro candidato.

O que podem esperar os que olham para os EUA de fora?
Em termos do que sabemos agora, salvo surpresas, é expectável pensarem que haverá uma mudança de liderança. Há é uma probabilidade, dada a covid-19, de que demore até sabermos quem ganhou, porque estaremos a lidar com muitos votos por correspondência. Podemos estar cautelosamente otimistas. Diria que os EUA têm estado protegidos da devastação da guerra por oceanos e tornámo-nos complacentes, sentimo-nos seguros, muitas vezes sentimos que somos melhores do que todos os outros. Neste momento não somos. O resto do mundo ultrapassou-nos largamente na resposta ao coronavírus, o resto do mundo está melhor em tantas métricas. É um verdadeiro acerto de contas para os EUA. A era Trump precipitou uma mobilização política, em particular nos jovens. Não quer dizer que a América agora vá ser o paraíso progressista. É uma nação ao centro, centro esquerda, em que a política de direita sempre fez parte e fará. Mas há uma grande onda de mudança. Olhando para isto como historiadora, penso que não podemos ignorar o facto de que algo verdadeiramente transformador está a acontecer. A crise causa transformação e temos agora a possibilidade de uma grande mudança política. Vejo uma reativação da política nas bases que é algo a que devemos estar atentos.

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