Tecnologia, Emoção e Morte ao Sol
O escritor de ficção científica Arthur C. Clarke, que adivinhou em 1945 a invenção dos satélites de comunicações, também previu o uso de tecnologia como solução para erros de arbitragem. No conto "A Slight Case of Sunstroke", publicado em 1958, um jogo importantíssimo é disputado na fictícia república sul-americana da Perívia, contra o histórico rival Panaguara. Metade dos cem mil espectadores são militares que receberam bilhetes gratuitos, bem como brochuras luxuosamente encadernadas em papel de prata. Suspeitando que o jogo foi comprado, o governo local formula um plano: ao primeiro erro clamoroso que os prejudique soará uma corneta, sinal para os militares erguerem as brochuras a um ângulo específico, de forma a reflectir a luz do sol na direcção do árbitro. Quando o momento chega (um fora-de-jogo escandaloso), cinquenta mil superfícies espelhadas erguem-se e o árbitro corrupto é instantaneamente incinerado, reduzido a um monte de cinzas sobre a relva. Mesmo com tecnologia rudimentar, um claro triunfo da verdade desportiva.
O Mundial da Rússia não teve (até agora) autos-de-fé. O que tem é o VAR - e a banda sonora que sempre o acompanha, como um rumor de vuvuzelas: queixas, indignações e debates sobre o que a tecnologia faz ao desporto e aos sentimentos.
Eis dois exemplos, nenhum deles hipotético, da intersecção entre tecnologia, futebol e emoção. Consideremos o "Exemplo A": num café com trinta pessoas a acompanhar uma transmissão televisiva com delay, um intruso com essa tecnologia de vanguarda chamada transístor grita um golo 5 segundos antes de a bola entrar. Consideremos o "Exemplo B": dois adeptos mexicanos que acabaram de festejar um golo da Coreia do Sul percebem que o lance vai ser revisto pelo VAR. Aguardam de joelhos (de mãos dadas e olhos fechados) que a decisão seja validada. Pouco depois festejam pela segunda vez, tão ou mais entusiasticamente do que da primeira. Testemunhei pessoalmente os dois episódios e o único que me levou a sentir que a emoção tinha sido prejudicada pela tecnologia foi o exemplo A.
Segundo o relatório apresentado por Pierluigi Collina, 99,3% das decisões de arbitragem durante a fase de grupos foram correctas (a taxa de acerto sem o VAR seria de 95%). 335 incidentes foram analisados, e 14 decisões iniciais foram revertidas pelo árbitro depois de consultar as imagens, 13 delas correctamente. Cada paragem demorou em média 80 segundos, os mesmos que Neymar demora a rebolar sempre que cai ao chão; o tempo útil de jogo (outro suposto apocalipse) tem sido superior ao que foi em 2014 e 2010. Quase todas as críticas justas incidiram sobre inconsistências (mãos na bola) ou omissões (abraços tunisinos a Harry Kane) em que o problema foi menos a existência ou inexistência do VAR e mais a velha questão de regras ambíguas suplementadas com directivas e esclarecimentos periódicos que parecem redigidos por Baudrillard.
A verdade é que grande parte das regras nunca poderão ser definidas com especificidade suficiente para tornar a interpretação supérflua (um desporto que inventou o conceito de "lei da vantagem" e que anda há décadas a tentar perceber o que é uma mão na bola "intencional" não se pode dar a esse luxo). Não será a tecnologia a produzir um sistema perfeito que consiga prever cada contingência, eliminando a necessidade de juízos subjectivos, um sistema em que a resposta exacta a cada problema que o jogo coloca possa ser localizada por um algoritmo e aplicada em conformidade. A utopia não é essa, nem deve ser.
O que o VAR pretende não é eliminar o erro humano, mas sim os erros de interpretação. Ou melhor: reduzir o número de casos em que nem sequer chega a ser possível cometer um erro de interpretação - aqueles momentos em que a informação ao dispor do árbitro é tão insuficiente e incompleta que a sua decisão é pouco mais do que uma moeda ao ar. É uma forma de conceder aos árbitros mais informação e mais tempo para a absorver; de lhes permitir que sejam menos vezes jogadores de casino e mais vezes intérpretes competentes ou incompetentes do que observam (como foi o árbitro do Irão-Portugal, que continuará a ser incompetente mesmo depois da Singularidade).
Existe um outro tipo de argumento contra o VAR, que é o mesmo tipo de argumento contra Acordos Ortográficos: quando o que se quer proteger não é bem uma pureza abstracta, mas os hábitos concretos que nos formaram. Torna-se quase uma versão distorcida do Princípio Antrópico: o desporto (e a ortografia) existiam nestas condições muito específicas quando eu os conheci, portanto estas são as únicas condições em que o desporto (e a ortografia) podem existir. Mas cada estado de coisas é um breve intervalo de tempo entre "pharmácias" e "objetos", entre não permitir substituições nem sequer para lesionados, e permitir duas, ou três. O facto de algo coincidir temporalmente connosco não o torna essencial, apenas familiar.
Até porque todas as outras circunstâncias mudaram. Em 1966, um fiscal-de-linha azeri podia decidir a final de um Mundial com um golpe de vista duvidoso, e a decisão permaneceria duvidosa durante o resto do jogo, da semana, da década. Quem tivesse passado cinquenta anos sem entrar num estádio de futebol (entre 1966 e 2016, digamos), acharia os espectadores mais irreconhecíveis do que o que se passa no relvado. Smartphones e wi-fi trouxeram uma versão artesanal do VAR para as bancadas muito antes de o sistema ser formalmente implementado dentro de campo. A maneira como sentimos emoção, injustiça, frustração e alegria também não é a mesma com um iPhone na mão. E quem preferia que o VAR não existisse não está a querer impedir o fenómeno futebolístico no seu todo de ser negativamente afectado pela tecnologia; está apenas a defender que o acesso a inovações que afectaram quase todos os outros participantes no espectáculo seja negado precisamente àqueles a quem elas são mais úteis.
A queixa de que este modesto impulso progressivo mata qualquer tipo de emoção desvaloriza tanto a maleabilidade do jogo em si como a nossa capacidade para ir integrando quaisquer modificações nas nossas respostas emocionais. Os dois adeptos mexicanos que viram um árbitro americano confirmar o golo coreano que eliminou a Alemanha e os apurou a eles, festejaram num bar em Lisboa, por causa de um jogo realizado na Rússia, e transmitido por satélites em órbita geoestacionária, 36 mil quilómetros acima da superfície terrestre. A tecnologia não estrangulou neles qualquer emoção antiga e preciosa; limitou-se a dar-lhe uma nova forma, antes impossível.
Por decisão pessoal, o autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico