Teatro: um lugar de interrogação do mundo
Há 60 anos era instituído o Dia Mundial do Teatro, que assinalamos neste mesmo mês em que se invoca a primavera, a água, a mulher, a poesia, a criatividade artística ou a eliminação da discriminação racial.
Falar de teatro é falar de uma arte que interroga, de uma arte da dúvida, que mergulha na condição humana e nas suas intemporais inquietações, pois "há sempre qualquer coisa que está pra acontecer", como antevia José Mário Branco.
Ser um fazedor de teatro é sentar-se à beira do mundo, desafiando o espaço e o tempo para construir um lugar onde, com todas as suas contradições e limbos, habita a lucidez e o devaneio, a esperança e o desconcerto, a intensidade e a fragilidade, a claridade e a penumbra - um lugar onde tudo é verdade, até a mentira.
Mas este teatro não é uma arte solitária; é, acima de tudo, um convite ao espanto. É a afirmação fervorosa de uma ritualística coletiva e a exaltação do calor e da vibração da assembleia humana. É o diálogo com o outro como ausência de ódio. É a celebração de uma respiração compartilhada e de uma energia empática que nos são vitais.
Falo de uma arte que renasce sempre, pois não deixa de ser uma convenção que temos constantemente de abolir. Daí que o teatro seja também um exercício de resistência, uma máquina de guerra contra a banalidade e o óbvio, uma cesura no automatismo rotineiro do quotidiano, a qual nos convida a parar para ouvir gritar baixinho.
É por isso que o teatro continua(rá) vivo e a pulsar. Porque não podemos rasurar o pensamento divergente, porque são urgentes velhos e novos entendimentos do mundo. Porque a vida impele-nos continuamente ao questionamento e à reinvenção também pela arte. Porque esta vivência contemporânea imersa na esfera digital, não obstante os benefícios, oportunidades e desafios ligados à mesma, deve ser indissociável de uma apologia intransigente da dimensão presencial, da corporalidade e da energia dos sentidos também nos planos cultural e artístico.
Nenhuma pandemia, guerra ou outra crise pode confinar a imaginação e o impulso criativo. Porque desde sempre os homens contam histórias uns aos outros. Afonso Cruz escreveu um dia que nós somos feitos de histórias, não de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros - mas sim de histórias. Enquanto houver pessoas e histórias haverá teatro.
E são essas histórias que (re)constroem e povoam os espaços dos teatros, os protagonistas em palco, os profissionais "invisíveis" e os públicos, criando lugares e não meros locais, os quais são camadas de significação política, estética, poética, simbólica e emocional que enformam a argamassa dos dias e convocam a reunião coletiva.
A este título, o presente ano traz-nos uma notícia de esperança: o arranque da rede de teatros, cineteatros e outros equipamentos culturais por todo o país, numa iniciativa estratégica inédita do Estado central de apoio financeiro à programação de estruturas municipais (e espaços independentes) na área das artes performativas, a qual visa incrementar o desenvolvimento e a coesão territoriais, a descentralização e a redução de assimetrias regionais, valorizando e promovendo a procura e a oferta culturais.
O teatro é esse barómetro-farol do mundo, essencial ao humano para continuar a revisitar o amor, a morte e o que está entre, a questionar o instituído, a desafiar o improvável, a desnudar ilusoriamente o segredo. Sem essa imensa potência que, milenarmente, o teatro convoca, alimenta e amplia não há possibilidades de futuro. Havemos de ir ao Teatro!
Ministra da Cultura