Tchaikovsky interdito
Uneasy lies the head that wears a crown.
W. Shakespeare, Henrique IV, Parte 2
Na primeira metade de 2001 vivi cinco meses na Herrenhaus Edenkoben, uma antiga mansão privada situada na Südliche Weinstraße, no estado da Renânia-Palatinado, a zona mais ocidental da Alemanha, a 40 km da fronteira francesa. Rodeada por vinhas, numa geografia privilegiada que se estende das planícies do Reno às montanhas Haardt, a propriedade é um lugar de confluência e encontro, convidando de cada vez um compositor, um artista plástico e um escritor a habitarem os seus espaços e ali desenvolveram os seus trabalhos, inteiramente focados nas suas obras e livres de preocupações materiais.
Naqueles meses fecundos, partilhei a Herrenhaus com a pintora alemã Andrea Bender e com a poeta húngara Zsófia Balla, casada com o tradutor e também poeta Csaba Báthori. Criámos laços de amizade, estimulados pelo diálogo estético e pelo confronto de experiências de vida muito diferentes. A Zsófia ouvi pela primeira vez falar do Holocausto na primeira pessoa. Da sua família de judeus húngaros, poucos sobreviveram ao flagelo nazi e o simples facto de ter nascido, três anos e quatro meses após o fim da guerra, parece um milagre inverosímil. Os seus pais tinham-se casado em 1934 e, em junho de 1944, foram detidos separadamente e deportados para Auschwitz. Mais tarde o pai seria transferido para Ebensee. Sem nada saberem do destino do outro, conheceram os horrores dos campos de concentração, os meses da agonia assassina do regime, e, miraculosamente, sobreviveram ambos, foram libertados e reencontraram-se em Kolozsvár, em maio de 1945.
Tinham perdido tudo. As suas famílias tinham sido dizimadas. Da guerra sobravam as memórias indizíveis dos campos de morte e do trabalho escravo, o testemunho do horror, o pesadelo das figuras fardadas. Ironia do destino, a mãe de Zsófia formara-se em Literatura Germânica e Linguística, antes da guerra, sem imaginar que um dia a sua existência estaria presa à vontade fútil de uma voz de comando na língua de Schiller e Hölderlin.
Deu-se então algo de extraordinário. Sobrevivente improvável do flagelo, o pai de Zsófia oferece à sua amada, como primeiro objeto no início de uma nova vida, um volume de poesia de Johann Wolfgang von Goethe. É difícil compreender o grau de humanidade, de serenidade e sabedoria que leva um homem que atravessou o inferno a distinguir dos seus carrascos a língua em que matavam e a cultura em nome da qual oprimiam. Para aquele judeu húngaro, símbolo de uma cultura inferior e degenerada aos olhos do nacional-socialismo, os versos do grande poeta do Sacro Império, destilados do espírito germânico, continuavam a ser universais e incorruptíveis - mesmo, ou talvez sobretudo, pela barbárie ariana. É, sem dúvida, o grau de sensibilidade e inteligência que distingue os homens...
Tenho recordado este episódio nos últimos dias, à medida que
se vão multiplicando notícias sobre a exclusão de artistas e autores russos um pouco por todo o mundo. Primeiro foram maestros e cantores conhecidos pelo seu alinhamento com a visão política do Kremlin: Valery Gergiev, o caso mais notável pela sua amizade com Putin, foi substituído em concertos nos Estados Unidos e na Europa, sendo definitivamente afastado dos seus cargos na Filarmónica de Munique e no Festival de Edimburgo (cidade irmanada com a capital ucraniana), entre outros. Mas a exclusão rapidamente ganhou uma dimensão mais ampla: foram cancelados espetáculos e digressões europeias de companhias de ópera e bailado russas; foi vedada a participação russa em eventos artísticos e desportivos internacionais; e, no sentido inverso, artistas e agentes culturais russos cancelaram as suas próprias atividades dentro e fora do país em protesto contra a invasão: curador e artistas previstos para a participação na Bienal de Veneza de 2022 retiraram-se em bloco, excluindo doravante a presença russa na 59.ª Exposição Internacional de Arte, que com eles se solidarizou; sucederam-se demissões de alguns dos mais prestigiados diretores artísticos de museus e teatros russos, entre os quais a carismática Elena Kovalskaya, diretora do Teatro e Centro Cultural Meyerhold de Moscovo, que declarou a sua recusa em "trabalhar para um assassino e ser paga por ele"; e também os maestros Vasily Petrenko e Thomas Sanderling renunciaram aos seus cargos em orquestras da Federação, denunciando "o fracasso moral e o desastre humanitário" decorrentes da invasão e "o brutal bombardeamento das cidades ucranianas pela liderança russa".
Parecem compreensíveis as ponderosas decisões de uns e de outros. Como pode uma instituição manter a colaboração de um artista que se recusa a demarcar-se da guerra? Como pode um agente cultural trabalhar para um governo cujas ações bélicas ferem os seus princípios morais?
Mas que dizer da exclusão de autores russos que viveram décadas ou séculos antes dos atuais ocupantes da Praça Vermelha? Que dizer do cancelamento da música de Tchaikovsky em concertos sinfónicos da Europa ao Extremo Oriente, ou da literatura de Dostoiévski numa universidade italiana? Como não compreender que tais autores pertencem hoje ao património da humanidade e que embarcar numa histeria de vetos e interdições é amputar uma parte da cultura universal, deixando-nos a todos mais pobres?
Não serão exemplos suficientemente inspiradores o distanciamento pacifista de um judeu como Daniel Baremboim, que ousou quebrar o tabu e levar a música de Wagner a Israel, ou a grandeza do pai de Zsófia, sobrevivendo aos horrores do Holocausto e oferecendo os versos de Goethe à sua amada?...
Maestro