Taras Shevchenko, poeta nacional da Ucrânia
Nasceu e cresceu na servidão o homem que há mais de um século é considerado o poeta nacional da Ucrânia, estando o seu livro Kobzar para o seu país como Os Lusíadas para Portugal. Taras Shevchenko, que, desde 2019, tem um busto na Praça de Itália, em Lisboa (juntando-se Portugal aos 35 países que lhe ergueram um monumento) herdou dos pais essa condição social, vigente no Império Russo até 1861 (quando foi abolida pelo czar Alexandre II), mas nem por isso deixou de se tornar um nome maior da poesia e das artes, reconhecido ainda em vida, tanto na Ucrânia como nos meios intelectuais russos.
Filho de um servo carroceiro, que transportava o trigo do seu senhor para Odessa, Kiev e outras grandes cidades, Taras Shevchenko nasceu em 1814, na aldeia de Morêntsi. Ainda muito pequeno, já acompanhava o pai na dureza desse quotidiano, como era corrente nesses tempos de crianças sem infância. Órfão de mãe e pai muito cedo, conquistou a atenção do seu senhor, Vasily Engelhardt, quando este descobriu que o rapaz copiava com brilhantismo os quadros que havia em casa. Determinado em incentivar-lhe o talento, Vasily pô-lo em contacto com alguns dos melhores artistas da época e, em 1829, levou-o primeiro a Vilnius e depois a São Petersburgo, onde ficaria a estudar com o pintor Vasili Shiriáyev. Pouco depois, Taras estabeleceria contacto com o artista ucraniano Iván Soshenko, que, por sua vez o apresentaria ao pintor mais famoso de então, o russo Karl Briullov. Empolgado, este último quis fazer de Shevchenko seu discípulo na Academia Imperial de Artes de São Petersburgo, mas os servos estavam proibidos de frequentar a escola. Este obstáculo não bastaria, contudo, para demover o mestre. Briullov juntou-se a vários outros pintores e ao poeta Vasili Zhukovski e, em grupo, reuniram os 2500 rublos necessários para comprar a Engelhardt a alforria de Taras. A 22 de abril de 1838, o jovem aspirante a pintor tornar-se-ia um homem livre.
À pintura somar-se-ia em breve a expressão poética e será esta a trazer-lhe tanto a notabilidade, como a perseguição pela polícia política do czar e depois a prisão. Em causa estava o conteúdo dos poemas (muito críticos e satíricos em relação à família imperial, por exemplo) mas também o facto de Shevchenko escrever frequentemente em língua ucraniana e não em russo. Por outro lado, tal como outros intelectuais, nomeadamente os membros de uma sociedade secreta designada por Irmandade de São Cirilo, o poeta defendia a independência da Ucrânia e a transformação do império czarista numa federação de nações eslavas.
Quando, em 1847, as autoridades extinguiram a Irmandade, o seu poema Sonho foi confiscado e tornou-se um dos argumentos que mais pesou para a sua prisão e posterior condenação ao exílio em Orsk, perto dos Montes Urais. À sentença do juiz, o czar Nicolau I acrescentou uma nota pessoal, recomendando que o prisioneiro ficasse sob estrita vigilância e fosse impedido de escrever e pintar.
Dez anos depois, após receber o perdão real, Shevchenko voltou do exílio, mas na condição de não poder viver em São Petersburgo e foi-lhe fixada residência em Nijni-Novgorod. Só em maio de 1859, conseguiria permissão para visitar a Ucrânia. Taras Shevtchenko dedicou os últimos anos da sua vida à poesia, pintura, gravuras, assim como à revisão do seu trabalho anterior. Mas as duras condições do exílio tinham-lhe minado a saúde e o poeta morreu em São Petersburgo, a 10 de março de 1861, um dia após o seu 47.º aniversário. Foi sepultado no cemitério Smolensk, mas uns meses depois, o seu corpo foi trasladado para a Ucrânia, satisfazendo-se, assim, o seu último desejo, expresso no poema Testamento (Zapovit, 1845), mais tarde traduzido para dezenas de línguas e musicado na década de 1870 por Hladky: : "Quando eu morrer, sepultai-me/Dentro da colina,/No meio da vasta estepe/Da minha amada Ucrânia/De onde posso contemplar/Amplos campos em redor/E ouvir as correntes do Dniepr/Descer com ruidoso rumor."
Apesar de pouco publicado em vida, até por razões políticas, (o livro Kobzar teve três edições durante a sua vida: 1840, 1844 e 1860) a sua influência na cultura ucraniana é imensa e persistiu mesmo durante o período soviético. Curiosamente, este regime não ostracizou a obra do poeta mas fez uma releitura, em que os poemas relacionados com a defesa da independência da Ucrânia foram substituídos por outros, mais críticos do poder dos czares e da ordem social que lhe estava associada. Desta maneira, Shevchenko foi lido não como um nacionalista ucraniano, mas como um internacionalista que, pela escrita, se teria batido apenas pela luta de classes e pela libertação dos trabalhadores oprimidos.
Esta visão seria revista na Ucrânia independente, de que o poeta se tornou um dos símbolos maiores, nomeadamente para a vasta comunidade na diáspora. Um símbolo de tal maneira importante que, em abril do ano passado, a sua estátua na cidade de Borodianka foi alvejada na cabeça pelas tropas russas. Como se fosse um combatente real. Se mais não houvesse, bastar-nos-ia este gesto de ódio para saber que o homem morreu há muito mas as suas palavras continuam a ter o poder de uma bandeira.
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