Talvez seja esse o momento em que deixamos de ser novos

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Quarta-feira, 15 de Março

Mudo dos 26º C da Califórnia para os -8º C do Massachusetts, seis horas de voo sem sair do mesmo país ou sobrevoar o mar, e percebo um pouco porque é que tantos, ao longo destes 200 anos, empreenderam na viagem em direcção a Oeste - porque é que a identidade da América está no movimento, e em particular na direcção contrária à que trago.

O verdadeiro sedentário, dizia Chatwin, é aquele que às vezes entendemos como nómada: ele está à procura de casa. E não é tão fácil assim - recordo-me ainda dentro do avião, à espera de que as mangas do aeroporto de Boston descongelem para desembarcarmos - conceber uma casa num lugar que nos retém ao fundo de um vale, nos resseca os legumes na horta, nos abre gretas nos nós dos dedos.

Mas trago comigo as palavras daquela velhinha terceirense que, em San Jose, me veio falar do livro que partilha o nome com esta coluna. "Já o li duas vezes e estou a acabar de ler a terceira." E pôs a mão sobre o peito: "Apaixonei-me por ele como se fosse um namorado."

Já conheço um pouco das comunidades luso-americanas, sejam elas quais forem: não há outro carinho assim. E, logo num dos primeiros restaurantes a que vou na Costa Leste, o proprietário oferece-me uma frase de efeito de bons augúrios: "Ah, a Terceira... O último lugar antes de chegar ao Céu."

Sedentários, todos eles. Viajando à procura de casa e conscientes de que não chegarão lá. Toda a tristeza aqui é irremediável, toda a alegria à condição.

O regresso será sempre um dos grandes temas da literatura, e nem é preciso ir à odisseia de Ulisses para percebê-lo.

Sexta-feira, 17 de Março

Sento-me na sala dos Farias, a TV acesa a um canto e o pequeno Patrick numa modorra ao colo da Patrícia, a assistir pelo telemóvel a um vídeo de desenhos animados. Tem três meses e nada mais o atrairá naquela pequena caixa, suponho, do que as luzes, as cores e os ruídos que saem dela. Mas a verdade é que dali a pouco está a esticar um dedo na direcção do aparelho, como a mãe acabara de fazer.

E eu pergunto-me: como vamos nós escrever para esta geração? Ou, mais em abstracto: o que será a literatura quando este bebé for um homem?

Continuará a existir, evidentemente. Mas de que linguagem se servirá? Será feita do quê, de imagens e cores? Usar-se-á de luzes? Verter-se-á em impulsos neurológicos? E em que medida isso submeterá o seu conteúdo, a relação entre este e a forma, a ideia de sublime?

Começa a tornar-se-me difícil imaginar o futuro. Talvez seja esse o momento em que deixamos de ser novos: aquele em que já não somos mais capazes de imaginar o futuro - não o distante, efabulado e distópico, mas o de depois de amanhã.

Já não consigo antecipá-lo, e tão-pouco sei se esta disputa académica entre a crítica literária e os estudos culturais, tão encarniçada na América como em nenhum outro lugar, é sinal de que estamos à procura de uma solução para as perguntas essenciais ou, pelo contrário, a fugir delas.

Para já, tento concentrar-me no televisor, onde passa uma sucessão de anúncios indistintos. Concentro-me nas marcas: TurboTax, ZipRecruiter, RocketLoans - seja qual for a área de actividade, agora é raro faltar lá um qualificativo. E é tudo fast, easy, big (mesmo jumbo). Até uma QuickBooks há.

Talvez esteja aí a nossa dificuldade, a daqueles que se tornaram incapazes de imaginar o futuro. Falamos uma linguagem lenta, vivemos numa bolha de lentidão. As coisas começam a ser difíceis para nós. Minúsculas, talvez - porque lhes vemos as formas, mas não as funções.

Chega a ocorrer-me que a existência de uma QuickBooks seja a resposta à maior parte das perguntas: livros rápidos. Mas depois percebo que estes livros são outros: um software de contabilidade - um costumer relationship manager, se a linguagem dos tempos em que tive em casa uma profissional da área não se desactualizou também.

Nada disto devia surpreender-me, na verdade. Ainda há dias, atravessando o Valley com o L., lhe pedi para fazermos uma paragem em Stanford. Gosto de coleccionar hoddies de universidades, e as cores de Stanford são mais bonitas do que as de qualquer campus da Universidade da Califórnia.

A certa altura, saí do vestiário, exultante:

- Caramba, sou um S!

E ele, com certa compaixão:

- Está-te boa. Mas olha que os tamanhos, aqui, são feitos para te deixar feliz. O S está cada vez maior para que cada vez mais gente se sinta bem ao experimentar a camisola e a compre.

E, acto contínuo, embarcou numa conversa sobre diferentes alterações de paradigma nos domínios do marketing, e que por acaso eu estava a achar bastante interessante até deixar de perceber fosse o que fosse. Fiquei na parte em que ele dizia:

- As redes sociais mudaram tudo. Esquece a televisão, esquece o resto.

E hoje, ao ver o pequeno Patrick, de três meses apenas, apontando o dedo ao telemóvel numa completa indiferença pelo ecrã quinze vezes maior ao canto, lembrei-me dessa conversa. Mas continuei sem conseguir explicá-la, a ela ou ao depois de amanhã.

Segunda-feira, 20 de Março

Regresso a casa e fundo-me em abraços - com a Catarina, com o Melville e a Jasmim. A salamandra arde brandamente e as plantas no jardim cresceram um pouco.

Na minha bolha de lentidão se sustenta hoje a minha felicidade. Deixai andar o comboio do mundo, que se eu não apanhar este apanho o próximo. É menor.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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