Suzume - o terramoto Shinkai
Chegou à competição com a fama de esmagador campeão de bilheteiras no Japão. Mais uma aposta de internacionalização da animação japonesa, Suzume, de Makoto Shinkai, aterra em Portugal para apelar a um público juvenil e graúdo, em especial para quem segue este tipo de cinema (O Tempo Contigo, do mesmo realizador, teve exibição comercial em 2019) e guarda no coração a herança de Miyazaki, mesmo quando a animação de qualidade não esteja a apelar tanto aos espectadores nacionais - os resultados fraquíssimos de Nayola, de José Miguel Ribeiro, são prova de contraste com os fulminantes números de Super Mario Bros, o bulldozer da Warner.
Fantasia com um pé no Japão real, a história segue uma rapariga chamada Suzume que, sem querer, entra através de uma porta mágica num mundo paralelo e percebe que os tsunamis e terramotos podem voltar a causar um rasto de tragédia. Ajudada por um banco encantado que fala, Suzume vai tentar viajar pelo país para evitar que essas forças sobrenaturais surjam. Uma trama que faz referência explícita ao terramoto brutal de 2011 em Tohoku e alude a um medo nacional real, jogando com uma espécie de folclore místico cem por cento nipónico, sem que, com isso, se perca uma tentativa de ser um retrato de mudança de idade de uma rapariga a descobrir o seu lugar no mundo. Ou seja, um típico coming-of-age.
Numa mesa redonda de um hotel em Berlim, durante a Berlinale, o mago da animação fala com alguns jornalistas internacionais com a ajuda de uma tradutora e começa por contar ao DN que se alguém tivesse pegado neste tema das tragédias naturais e o fizesse em imagem o real o resultado seria demasiado pesado e sério: "com a animação podemos inventar personagens como este gato mágico ou outros elementos diferentes. Dessa forma, o público aceita melhor... Penso que na animação chegamos melhor a certos tópicos mais sérios".
Certos elementos e referências talvez escapem a um público mais ocidental, como por exemplo a referência a 3.11, a data do terramoto de 2011... Shinkai tem essa noção e desenvolve: "sim, há essa referência quando vemos o diário de Suzume e qualquer japonês sente um arrepio na espinha com isso! Mesmo assim, o filme no seu todo pode tocar o público ocidental... Seja como for, nós japoneses, quando vemos um filme francês não compreendemos todos os significados culturais, mas não nos deixa de fascinar. Muitas vezes até pesquisamos sobre o que não percebemos. Gostava que uma pequena percentagem das nossas audiências internacionais pudesse fazer uma pesquisa sobre esta questão dos terramotos no Japão". E sobre isso monta uma outra reflexão: "a invasão à Ucrânia e o terramoto da Síria e Turquia mostram-nos que de repente tudo pode colapsar... No Japão vivemos em paz mas num território propenso a terramotos e isso faz-nos mentalizar que a vida pode não ser igual amanhã. Penso muitas vezes que o meu apartamento em Tóquio pode ser destruído num instante. Esse sentimento de fragilidade persegue-me sempre. No Japão vive-se com essa noção... No filme diz-se que vivemos lado a lado com a morte mas que, ainda assim, queremos viver cada vez mais... Por exemplo, mesmo tendo isso em conta quero sempre viver de forma feliz com a minha família o máximo tempo possível".
Em Suzume, Shinkai mistura uma dimensão espiritual com uma carga emocional que segue um manual de saga de aventura clássica, quase como uma epopeia. O realizador, que é visto como um ídolo pop no Japão sublinha o seu lado religioso: "sou uma pessoa muito espiritual, acredito em sinais. No Japão temos muitos templos e eu vou lá muitas vezes rezar. Orar é algo natural e orámos muito para que a pandemia acabasse e que não surgissem terramotos. Todos os meus filmes têm esse toque espiritual. Podemos não acreditar em Deus mas sabemos que há lá em cima algo superior. O elemento de fantasia espiritual de Suzume surge de forma natural. E quero que os meus espectadores chorem e riam, mas sobretudo que encontrem algo inesperado, nem que para isso tenha de recorrer a elementos melodramáticos". O realizador frisa que o seu amor pelo anime é importante em especial para formar o gosto cinéfilo para as novas gerações e não esconde a sua reverência pelo mestre Hayao Miyazaki.
Na essência, este conto de memórias na ruína, autêntica metáfora em forma de processo de regeneração de traumas da sociedade japonesa, é simultaneamente uma celebração nada contida de uma ideia de Japão. Por muito que nos custe alguns lugares comuns da estética "juvenil" do estilo de Shinkai, a noção de dimensão pessoal desta odisseia de uma rapariga que quer salvar o Japão, parece correta.
Custa também um pouco assumir o peso ruidoso da música dos Radwimps, sobretudo nas canções mais melosas, mas nada que tire o esplendor de um universo de exaltação à paisagem e ordem japonesa. Nesse ponto, é também um filme para empolar o orgulho japonês. E, claro, fica a dúvida e contradição: mesmo com tudo isso, o cinema de Shinkai supera o embaraço de se assumir autoral? Não é questão fulcral, mas a sua inquietação moral e formal parece dar pistas. Há um propósito beatificado de pacificação com os próprios moldes de ritmo e expansão da escala. Uma espécie de declaração de intenções da receita: é o que é e não importa o resto.
Se a estrutura narrativa fosse mais enxuta (a longa duração não joga a seu favor), era possível colocar Suzume num estatuto de tesouro de anime. Ainda assim, aquela personagem do homem misterioso ser transformado num simpático banco amarelo saltitante é coisa de génio.
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