Susana Peralta: "Em 2021 já surgiram alertas para a crise inflacionista e de habitação"
Os dados do relatório "Portugal, Blanço Social 20222" agora conhecidos confirmam o agravamento previsto dos rendimentos das famílias em 2020?
É evidente que houve um agravamento da situação económica e social das pessoas mais pobres [ganham 60% ou menos de mediana de rendimentos, cujo valor ronda os seis mil euros/ano] e que está relacionado com a pandemia de covid-19. Isso vê-se não só no aumento da taxa de pobreza como também na distribuição de rendimentos. Ao analisar os gráficos pode ver-se que aumentou a percentagem de pessoas nos rendimentos mais baixos.
Que percentagem é?
Nós olhámos para as pessoas que ganham 50% do rendimento mediano [as estatísticas europeias focam-se nos rendimentos de 60% da mediana], com uma correção para a dimensão do agregado familiar, e nesses casos houve um aumento de 2019 para 2020: passou de 10% para 12,4%. Estes são os mais pobres dentro dos pobres.
Os apoios dados não ajudaram a travar essa quebra de rendimentos?
Os apoios covid foram baseados na questão do lay-off, que foi o grande programa social, mas esse programa não chegou às margens mais desfavorecidas do mercado de trabalho. Não chegou às pessoas que não têm contratos permanentes, que não têm uma relação estável com a empresa. E, portanto, esse ano foi bastante difícil para as pessoas mais pobres do país.
Com alguns setores a serem especialmente atingidos...
Os setores mais afetados foram a restauração, o retalho, o alojamento e os transportes - neste caso os que dependem do turismo. Esses setores são marcados por salários abaixo da média e contam com uma percentagem superior de pessoas com baixo nível de educação. Também no caso dos restaurantes e do alojamento há uma grande prevalência de mão-de-obra imigrante. São, assim, setores que têm um mercado de trabalho especialmente frágil e o lay-off não ajudou essas pessoas.
São trabalhadores sem contrato permanente e que as empresas também não ajudaram...
Preferiram desfazer-se das pessoas.
Também houve diferenças no acesso ao teletrabalho...
A população pobre não conseguiu trabalhar a partir de casa -- que foi uma boa forma de mantermos o nosso rendimento. Os pobres não tinham essa hipótese e isso também os levou a perder rendimento.
A situação não se alterou depois do forte impacte da pandemia?
O que sabemos referente ao ano de 2021 é transmitido pelo Instituto Nacional de Estatística, mas são as estatísticas standard. E indicam que nesse ano a taxa de pobreza praticamente se reverteu, ou seja os dois pontos percentuais que tínhamos tido a mais em 2020 praticamente baixaram em 2021, o que é normal no sentido em que em 2021 ainda houve lockdown, mas também houve uma adaptação. Por exemplo, o retalho passou a vender mais online. Mas só saberemos mais quando tivermos os microdados. Sabemos que existiu uma recuperação da pobreza mas não sabemos que tipo de famílias recuperou.
No relatório "Portugal, Balanço Social 2022" alerta-se para o facto de muitas pessoas terem dificuldades em ter férias fora de casa...
É a questão da privação material. Nas estatísticas há várias categorias, por exemplo se as pessoas conseguem aquecer a casa (pobreza energética), se conseguem alimentar-se com proteínas animais ou vegetais em dias alternados e a questão de pagar uma semana de férias fora de casa. Mas tudo isso tem que ver com a comparabilidade intereuropeia. Obviamente que 60% do rendimento mediano no Luxemburgo ou na Suécia não tem nada que ver com o rendimento mediano da Bulgária ou Roménia. É possível que uma pessoa considerada pobre na Suécia tenha acesso a muitos mais bens de consumo do que muitos ricos na Roménia.
Mas a privação material diminuiu?
Entre 2020 e 2021 diminuiu em quase todos os indicadores, embora haja um ligeiro agravamento em alguns, como a capacidade para pagar uma semana de férias fora de casa por ano ou até a capacidade financeira para ter uma refeição de carne ou peixe alternadas.
Na análise aos dados disponíveis nota-se melhorias na qualidade de vida das pessoas em 2021?
É um ano menos grave do ponto de vista da crise pandémica, é até de recuperação económica, mas é também um ano afetado pela crise inflacionista e essa crise vai necessariamente revelar-se no acesso aos bens referidos.
Começam a surgir os alertas para o aumento do custo de vida?
No nosso relatório olhamos com algum cuidado para as taxas de esforço. Em 2020 ainda não havia crise, só começou no último ano. O que dizíamos era: atenção à taxa de esforço, as famílias têm mais dificuldades em chegar ao fim do mês. Lembrámos que [em 2020] as pessoas já estavam com taxas de esforço elevadas.
E os problemas no setor da habitação?
A taxa de esforço dos agregados mais pobres era de 38,4% [do rendimento], quando em média as famílias residentes em Portugal gastavam 20,5% do rendimento disponível com a habitação.
Portanto já se antevia a crise que atualmente afeta tantas famílias?
Tudo indiciava que sim, apesar de o Banco de Portugal ter dito várias vezes que não tinha uma dimensão macroeconómica muito importante. O que é verdade, pois caso não atinja muitas famílias não terá verdadeiro impacte no sistema financeiro.
Uma crise que se sente mais nas grandes cidade...
As cidades são espaços urbanos muito populosos, são também aqueles onde há uma maior diversidade de atividades económicas. Em todo o mundo são sempre as zonas onde há maior desigualdade de rendimento, de educação, de atividades.
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