Susan Sontag e eu

Publicado a
Atualizado a

S

ei que o executar desta dança ritual de memórias e luto em torno de Susan Sontag, este girar à sua roda com as minhas palavras e a minha tristeza nostálgica, é um pouco o recorrer à magia da escrita para guardar a ilusão de recuperá-la, ressuscitá-la e trazê-la de novo até mim exactamente como a lembro soberba. Desafiadoramente bela e perturbadoramente controversa, naquele milagre de luz que sempre a acompanhava numa intensa turbulência rubra.

Tal como a conheci e vi pela primeira vez mão a empurrar o vidro no acto de abrir de rompante a grande porta de um hotel da cidade do México. Muito alta e morena, pernas compridas moldadas pelos jeans velhos, camisa de seda azul-forte, casaco de camurça que mal lhe escondia a sofreguidão incendiada do corpo. Chapéu de cowboy atirado para trás das costas, por onde corria a onda espessa do seu cabelo negro, listrado por uma longa madeixa branca. E durante um breve segundo tudo pareceu emudecer, parar à nossa roda, frente àquela imagem subjugante, explosiva de vigor. Uma força da natureza que destruía todas as sombras.

As outras mulheres que, uma a uma iam chegando de vários países, pareciam apostadas em se apagar confrontadas com ela, embora diversas e combativas, empenhadas em levar o seu melhor ao Congresso Feminista para o qual fôramos convidadas. Réplica a um anterior conclave protagonizado por machistas de renome, homens exibicionisticamente sexistas comandados por Norman Mailer, que Susan Sontag deitava a perder pelo ridículo. Lembro-me como nos fazia rir noite fora com as histórias que contava, presas da sua constante iluminação, do seu imaginário cruel e implacável. Fazendo espectáculo de cada um dos seus actos, ainda que contraditórios com as suas ideias e posições de desassombro.

Ambiguidade que se tornou bem evidente nas sessões em que então exibiu um documentário em defesa e elogio a Israel, que acabara de realizar e levara consigo. Assisti aos debates ferozes que no final fez com os estudantes e os intelectuais que, com pouco êxito, se esforçavam por derrubá-la, visivelmente incomodados quando ela descia do palco e se passeava pela sala, botas de pele áspera por cima da bainha das calças, com uma consciente graça masculina que utilizava sem escrúpulo, do mesmo modo que usava a acutilante inteligência e o dom da palavra.

Desenvoltura e veneno com que derrubou Alberto Moravia, que já no final do mês apareceu de surpresa numa cadeira de rodas e um pé engessado, durante um cocktail que nos fora oferecido. A sua presença devia-se não tanto à curiosidade como à inquietação, não fosse o caso de as feministas lhe desencaminharem a mulher que na altura era Dacia Maraini, uma das congressistas, escritora italiana bonita e de talento que poderia ser sua filha. Perplexo com o facto de nenhuma das presentes caírem de joelhos numa demonstração de devotado apreço pelos seus romances fálicos, Moravia tentou inventar argumentos para alimentar e ganhar uma discussão estéril sobre o diminuto lugar da mulher na história da literatura. Sem um único sorriso, Susan Sontag não lhe deu tréguas nem se condoeu, deixando-o de rastos.

Nunca conheci ninguém que como ela conseguisse ser, ora arrogante ora frontal, ora petulante ora mágica, ora irritante ora divertida, ora sensível ora de pedra; sem contudo jamais deixar de arder no vulcão do seu peito, amante de si própria, à sombra das cinzas ardentes, metáfora que anos mais tarde haveria de transformar num dos seus romances mais conhecidos, mas na altura apenas o começo de um distante projecto, de que lhe ouvi falar quando durante demorados crepúsculos ambarinos, descansávamos das horas abrasadas passadas nas estradas do México.

Frondosos campos onde fantasmagóricas vacas brancas pastavam à noite vigiando o escuro com os seus olhos acesos, paisagem que logo se poderia transformar em lugares de uma aridez infinita, atravessada no início da tarde pelas iguanas que preguiçosamente deixavam a marca do seu rastejar na poeira sanguínea. Nuvem acre a levantar-se debaixo dos nossos passos ou de rojo na perseguição dos carros, que durante perto de um mês nos levaram a todas na descoberta de cidades, de montes e ravinas. De vilas onde ao meio-dia os homens adormeciam encostados às paredes brancas, sombreros sobre a cara, como nos filmes. Desfolhando-se o ar pesado de calor, repleto de odores escarlates numa mistura de frutos exóticos e de flores carnívoras.

E enquanto a maioria se recusava a visitar as igrejas barrocas, os museus ou as ruínas, nós as duas entrávamos neles atentas ao silêncio e à beleza, na construção de um relacionamento de amizade que escapava às palavras. Foi assim que, de regresso à cidade do México, descobrimos os angustiantes quadros de Delvaux, demorámo-nos na mítica casa onde Trotsky viveu e foi morto, procurámos seguir os trilhos e os indícios perturbadores de Frida Kahlo, e por fim subimos as pirâmides do Sol e da Lua, frente às quais tirámos fotografias levadas pelo entusiasmo de Gisèle Halimi, azougue a contrastar com a tranquilidade pachorrenta e matricial de Kate Millett, que regressara mais cedo aos Estado Unidos, preferindo Susan Sontag prolongar os dias daquela viagem de alegria vivida no feminino, e que ela ali ia já reinventando. Atordoada, vi-a voar pelos corredores do hotel, a desdobrar-se em encontros com universitários, com grupos de escritores e de cineastas independentes, de feministas um pouco atemorizadas com o seu fogo.

Quis o destino que nos encontrássemos através dos anos com o idêntico entusiasmo e envolvimento. Dessas vezes recordo em particular a que se deu, sem aviso, antes de um jantar oferecido no Palácio da Ajuda por Mário Soares, quando Presidente da República, a escritores estrangeiros que participavam num encontro em Lisboa.

Por entre a muita confusão e ruído, com a sua habitual desenvoltura, disse-me ir tentar, junto do Presidente, obter um sítio para falarmos em sossego. Mas porque são inúmeras e tranquilas e belas as salas do palácio, foi-nos fácil escolher uma onde nos demorámos atropelando as frases pelo tanto que tínhamos para dizer uma à outra. Insurgindo-se Susan Sontag por eu querer menos falar do que ouvi-la, a maravilhar-me com a modernidade aventurosa com que ela continuava a saber celebrar a vida.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt