Suposta "tristeza" de Lula não se justifica, dizem politólogos
Depois de a imprensa noticiar supostas "tristeza", "desilusão" e "ansiedade" de Lula da Silva, o estado de espírito do presidente do Brasil, à entrada para o quinto mês de mandato, entrou de rompante na atualidade política do país. Em causa, os obstáculos na conjuntura atual que Lula não enfrentou em 2003 e em 2007 quando tomou posse nos dois primeiros governos. Aliados, porém, apressaram-se a desmentir os rumores. E politólogos não veem motivo para tanto.
"Lula está ansioso e, nalguns momentos, demonstra estar até triste com as condições adversas que enfrenta hoje para governar o Brasil", escreveu Mônica Bergamo, colunista do jornal Folha de S. Paulo tida como próxima dos novos inquilinos dos palácios do Planalto e da Alvorada.
"Auxiliares e ministros que despacham com frequência com Lula dizem que os momentos em que ele deixa transparecer maior deceção são aqueles em que percebe as diversas limitações que tem para fazer valer a sua vontade - e que são maiores do que as que existiam nos seus dois mandatos anteriores", continua.
"Entre 2003 e 2010, o líder do PT governou com aliados de primeira hora no comando do Parlamento, tinha ascendência sobre o Banco Central, que ainda não era independente, e gozava de uma popularidade incontrastável que o ajudou a superar diversas crises", ao contrário do cenário atual de derrotas parlamentares, de braço de ferro, até ver perdido, com o Banco Central para baixar a taxa de juros, de dificuldades para fazer aceitar o nome do seu advogado para o Supremo Tribunal Federal e de contratempos na política internacional.
"Lula estaria, de acordo com assessores próximos, vivendo um paradoxo: elegeu-se com ambições maiores do que as que tinha em eleições anteriores e determinado a, desta vez, não fazer tantas concessões como as que teve que fazer anteriormente para governar, porém, ele tem hoje muito menos poder", completa a jornalista.
Amigo íntimo de Lula, o advogado Luiz Carlos da Rocha disse que "Mônica Bergamo é uma grande jornalista" mas, desta vez, foi influenciada por "uma fonte ruim". "Estive com Lula quase todos os dias em que esteve preso em Curitiba e asseguro: o seu lado depressivo morreu no parto, em 580 dias na cela, nos fins de semana sozinho, teve zero de tristeza e ansiedade: vai ficar triste e ansioso agora no conforto dos palácios?", perguntou-se.
O DN quis saber, com politólogos, se a tristeza, existindo ou não, se justifica. Aparentemente, não. "Lula deve ver para já o copo meio cheio e não meio vazio", disse Vinícius Rodrigues Vieira, professor de Economia e Relações Internacionais na Fundação Armando Álvares Penteado. "A proporção de votos, menor margem da história, já indicava mais dificuldades para Lula neste mandato do que nos dois anteriores mas acho que há um pessimismo exagerado em relação ao governo, tendo em conta os indicadores macroeconómicos com perspetivas de crescimento"
"O cenário externo também não parece favorável mas enquanto perdurar a guerra na Ucrânia as commodities tendem a permanecer num preço elevado, o que é bom para o Brasil", diz Vieira, para quem, ainda na política internacional, "há boas perspetivas na questão indígena e ambiental".
"E temos de nos perguntar para que Lula foi eleito: ele foi eleito para assegurar a democracia no Brasil, tanto que setores de centro que nunca o engoliram migraram para a candidatura dele e não teriam migrado se o opositor dele não fosse Jair Bolsonaro, que planeava um golpe para destruir a democracia conforme as provas que se acumulam dia após dia".
"A relação com o Congresso preocupa, por força da fragmentação partidária e dos poderes adquiridos pelos parlamentares nos governos de Michel Temer e de Bolsonaro, mas isso não reduz a capacidade do presidente na agenda social, que ainda tem Alckmin para a ponte com o setor empresarial", conclui.
Mayra Goulart, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concorda. "No Congresso, o que estamos a ver é uma pressão por apoio parlamentar diferente da tradicional: na tradicional, a discussão era via partidos, em coligações, com o governo a negociar diretamente com os líderes partidários mas esse tipo de negociação vigorou só até Eduardo Cunha [o presidente da Câmara dos Deputados em 2015 e 2016 que promoveu o impeachment de Dilma Rousseff]".
"Como Cunha conseguiu arregimentar parlamentares individualmente, sem a mediação dos líderes partidários, as coligações tradicionais desmoronaram e isso notou-se sobretudo nos governos Temer e Bolsonaro, ambos frágeis perante o Congresso, quando o legislativo ganhou grande preponderância sobre o orçamento".
"Com um governo como o de Lula, mais forte do ponto de vista partidário, na academia, na opinião pública, o Congresso receia perder essa preponderância conquistada, daí a tensão", acrescenta Goulart. "Sendo que essa tensão só será amenizada se a popularidade do governo subir, porque nessa altura os parlamentares vão querer associar-se a ele".Goulart, para quem "a tensão com o Banco Central já era esperada", admite, no entanto, "um desafio novo": "a organização da direita em movimentos sociais e através de uma elite económica disposta a financiar esses movimentos: isso é uma diferença em relação aos governos anteriores de Lula".