Super-mulher anónima

Em<em> A Tempo Inteiro</em>, Laure Calamy supera-se no retrato de uma mãe solteira que enfrenta uma greve de transportes numa semana decisiva. Um <em>thriller </em>enxuto que capta a febre da gestão familiar e laboral.
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Acordar ainda de madrugada, vestir e alimentar os miúdos, deixá-los na casa da vizinha, correr para apanhar o comboio para Paris, "ser invisível" num hotel de 5 estrelas, limpando a porcaria dos hóspedes exigentes, despir a farda e voltar a apanhar o comboio... A rotina da protagonista de A Tempo Inteiro não é muito diferente da de milhões de trabalhadores em todo o mundo, que vivem nos subúrbios e têm os empregos na grande cidade. E é precisamente essa narrativa comum que o filme do franco-canadiano Eric Gravel quer mostrar, para medir o pulso a uma mulher presa nas malhas do método existencial. Uma cidadã francesa divorciada, com dois filhos pequenos a seu cargo, que antes de ser mãe trabalhou no meio corporativo (tem um mestrado em Economia) e agora é camareira-chefe num hotel onde até pode ser necessário limpar fezes das paredes, conforme o grau de extravagância dos clientes.

Um dia normal na vida de Julie já é pouco recomendável a cardíacos, mas se ao seu quotidiano cronometrado acrescentarmos uma semana de greve na rede de transportes, o stress rebenta a escala. Na verdade, À Plein Temps podia mesmo ser um filme sobre as consequências dessas greves na rotina de uma mãe solteira da classe média. Só essa dimensão tem sumo suficiente para um retrato muito identificável, com generosos níveis de tensão e "olhar social". Mas, aos nossos olhos, este não é tanto um objeto de realismo social quanto um thriller mesclado de filme de ação sobre o mundo do trabalho, com uma brilhante atriz francesa, Laure Calamy, a levar-nos para aquela zona interior indefinível onde vamos buscar forças para continuar, apesar de a luta contra o tempo parecer uma batalha perdida. Calamy já tinha surpreendido bastante numa comédia chamada O Meu Burro, o Meu Amante e Eu (2020), de Caroline Vignal, enquanto mulher frustrada e a rebentar de tristeza num contexto sem um terço da gravidade de A Tempo Inteiro.

Porém, o seu desespero controlado neste filme de Gravel não está muito longe desse estilo expedito da atriz, que aqui encarna uma leitura frenética da realidade, movendo-se ao longo das horas do dia como um ponteiro que não pode atrasar e tem de conseguir fazer tudo para se manter no ritmo da existência. Incluindo ir a entrevistas de emprego nas horas de trabalho, pondo em risco o posto de alguém, e comprar um trampolim e montá-lo sozinha a altas horas da noite, para cumprir a meta de um dia de aniversário com o devido zelo maternal, apesar do aperto financeiro.

É um thriller, dizíamos, porque aplica a sua inteligência dramática aos movimentos desta mulher, sem contemplar qualquer aspeto cultural ou político: nunca sabemos qual é a posição dela sobre nada, porque tudo o que interessa é o monstro prático da vida, as situações por resolver, as obrigações laborais e familiares e a tentativa de mudar algo apenas para manter a cadência rotineira com outro incentivo monetário. A câmara de Gravel "imita" esta linguagem prática e enxuta e assume uma espécie de anonimato para a sua protagonista. Ela é um corpo que não pára - quando o faz, não parece corresponder a descanso - e a sua exaustão é a nossa.

dnot@dn.pt

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