Super-Mario. O salvador do euro parte em missão de resgatar Itália

Mario Draghi, o economista que muitos italianos viam a caminho da presidência, aceitou tentar formar um executivo, depois de Giuseppe Conte e os partidos da coligação falharem um entendimento mais alargado. Nada garante que seja bem-sucedido.
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O guião já é conhecido dos italianos. Quando a crise aperta e os partidos não se entendem para formar governo, o presidente da República toma a iniciativa e acaba por chamar uma personalidade alheia à política, ou pelo menos à política partidária, para chefiar o executivo.

Ao fim de semanas de desentendimentos entre o primeiro-ministro Giuseppe Conte e Matteo Renzi, antigo primeiro-ministro e atual líder do pequeno partido Itália Viva, que culminou com a deserção de duas ministras e de um secretário de Estado, nem uma moção de confiança aprovada foi suficiente para salvar a coligação contranatura do Partido Democrático (centro-esquerda), Movimento 5 Estrelas (antissistema), e os pequenos Livres e Iguais e Itália Viva.

A escolha de Sergio Mattarella recaiu em Mario Draghi, o homem que aos comandos do Banco Central Europeu (BCE) tudo fez para a zona euro não naufragar durante a crise da dívida. "Whatever it takes" (o que for necessário) foi a declaração que ficou para a história, ao lado dos seus atos, ao interpor o BCE como escudo protetor dos países em dificuldades, na compra de títulos de dívida, entre outras medidas de emergência que moldaram os limites da intervenção daquela instituição. A reputação internacional de Draghi subiu aos píncaros e ficou conhecido como Super-Mario, embora em Itália também seja lembrado pelos repetidos apelos à austeridade.

Diz quem sabe que o nome do economista já fazia parte das especulações nos corredores do parlamento, quando o demissionário Giuseppe Conte esperava ainda virar o jogo em seu favor e apresentar-se à frente de um terceiro governo. "De vez em quando, precisamos de um choque para colocar o país de novo nos eixos. É como se o país precisasse deste tipo de solução para resolver as suas fraquezas", comentou o cientista político Lorenzo Castellani, à AFP.

Quando a francesa Christine Lagarde tomou o cargo de presidente do BCE, Draghi disse aos jornalistas para perguntarem à sua mulher sobre o futuro. Em Itália não faltou quem o visse com potencial sucessor de Mattarella, cujo mandato de sete anos termina em 2022 e já disse que não quer recandidatar-se. Os mais atentos notaram que a reforma em silêncio de Draghi durou pouco mais de quatro meses.

Em março do ano passado, escreveu no Financial Times um texto no qual comparou a pandemia a uma guerra, tendo traçado um plano para a vencer, uma resposta urgente dos governos em apoio incondicional em defesa do emprego e das empresas, recorrendo ao endividamento público, aos empréstimos a custo zero e ao cancelamento de dívida privada. "Face a circunstâncias imprevistas, uma mudança de mentalidade é tão necessária nesta crise como seria em tempos de guerra. O choque que estamos a enfrentar não é cíclico. A perda de rendimentos não é culpa de nenhum dos que sofrem com ela. O custo da hesitação pode ser irreversível", avisava.

Draghi voltou a intervir meses mais tarde a exortar os governos a garantirem liquidez às empresas e a apoiarem os rendimentos, e dessa vez também pediu atenção para os jovens. Por fim, em dezembro, a propósito do Fundo de Recuperação, através do qual Itália vai receber 220 mil milhões de euros da União Europeia, Draghi advertiu: "Se os fundos forem desperdiçados, a dívida acabará por se tornar insustentável porque os projetos financiados não produzirão crescimento." Nem de propósito, foi a forma como o governo de Conte geriu o combate à pandemia e os seu planos para o Fundo de Recuperação os pomos da discórdia com Matteo Renzi.

Terminado o prazo dado pelo presidente Mattarella para Conte e os partidos da coligação apresentarem uma resposta, Draghi foi chamado na quarta-feira de manhã ao Palácio do Quirinal e de pronto aceitou a incumbência de tentar formar um governo. "É um momento difícil", disse à saída da reunião.

"Vencer a pandemia, completar a campanha de vacinação, oferecer respostas aos problemas do dia-a-dia, relançar o país são os desafios", continuou. "Temos à nossa disposição os extraordinários recursos da UE, temos a possibilidade de trabalhar com um olhar atento às gerações futuras e à coesão social." E concluiu: "Estou confiante que a unidade e a capacidade de dar uma resposta responsável emergirão do debate com os partidos, grupos parlamentares e forças sociais."

A confiança de que será o trigésimo primeiro-ministro a chefiar o 67.º governo no pós-guerra e a resposta em alta na Bolsa de Milão são sinais positivos, mas não chega. É preciso apoio partidário e esse não está garantido. Do seu lado já se sabe que conta com o Partido Democrático e com o Força Itália de Silvio Berlusconi, entre outros pequenos partidos. Todavia, para alcançar uma maioria nas duas câmaras, o economista de 73 anos está obrigado a receber apoio ou do Movimento 5 Estrelas ou da Liga, uma vez que os Irmãos de Itália, de extrema-direita, já disseram pela líder Giorgia Meloni que não aceitam "mais um governo nascido no Palácio".

Matteo Salvini, o líder da Liga, partido que lidera as sondagens, disse ao Corriere Della Sera que só aceitará um governo de transição até eleições em maio ou junho, enquanto o líder interino do 5 Estrelas, Vito Crimi, disse que o partido não apoiava Draghi. No entanto, os media italianos asseguram que o partido se encontra dividido, pelo que não é impossível uma fação juntar-se à futura coligação.


Romano

Nasceu na capital italiana em 1947, é casado e tem dois filhos. Tem uma segunda casa na pitoresca Città della Pieve, a 150 quilómetros de Roma.

Economista

Licenciou-se em Economia na Universidade Sapienza, tendo anos mais tarde, já professor universitário, obtido o doutoramento no Massachusetts Institute of Technology (1977).

Líder

A partir de 1984 sucedem-se cargos de topo: diretor executivo do Banco Mundial, diretor-geral do Tesouro, vice-presidente do Goldman Sachs, governador do Banco de Itália, presidente do Banco Central Europeu.

Ousado

Draghi nunca virou costas às adversidades, fosse durante o período de privatizações enquanto diretor-geral do Tesouro, fosse ao enfrentar a crise do euro e da dívida da Grécia, à frente do BCE.

Carlo Azeglio Ciampi

Em plena tempestade provocada pela Operação Mãos Limpas, pela campanha terrorista da máfia e uma recessão económica, a solução do presidente Scalfaro foi chamar o governador do Banco de Itália. Ao fim de pouco mais de um ano, em maio de 1994, passou a pasta a Silvio Berlusconi, que havia vencido as eleições. Mais tarde foi ministro das Finanças e por fim presidente (1999-2006).

Lamberto Dini

Ao contrário de Ciampi, já estava a desempenhar funções políticas - ministro das Finanças - quando o governo de Berlusconi cai e Dini emerge como solução tecnocrática para Scalfaro, acumulando a pasta das Finanças. A experiência terminou ao fim de menos de ano e meio, em 1996, mas foi a votos com partido próprio e manteve-se no executivo, como ministro dos Negócios Estrangeiros, até 2001.

Mario Monti

É mais uma vez na sequência do fim de um governo de Berlusconi que um economista não eleito é chamado a pôr ordem na casa. Desta vez em plena crise do euro, o ex-comissário europeu Monti é nomeado senador vitalício e conduzido pelo presidente Napolitano para o cargo de primeiro-ministro, onde permanece de novembro de 2011 a junho de 2013. É responsável pela introdução de medidas de austeridade e de reformas laborais.

Giuseppe Conte

O coelho da cartola que acabou com um impasse de meio ano na formação de um governo, o então desconhecido professor universitário tornou-se num popular líder e pelo caminho desfez-se da Liga de Salvini num segundo governo. Acabou por ser derrubado pelo pequeno partido do ex-governante Matteo Renzi.

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