Sujos e repugnantes, eis os italianos na luz de Caravaggio
Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) morreu muito novo, aos 38 ou 39 anos. Não tinha oficina própria nem discípulos e praticamente nunca saiu de Itália (teve uma passagem por Malta, por onde andou fugido à polícia). Apesar disso, a influência dele foi enorme e surpreendentemente heterogénea. "Caravaggio foi, sem dúvida, uma das figuras mais revolucionárias da arte", explicou a comissária da exposição, Letizia Treves, durante uma visita guiada organizada para a imprensa internacional acreditada em Londres.
Segundo Treves, a influência na arte europeia perdura até hoje. "As telas [de Caravaggio] têm uma originalidade notável, um naturalismo intenso, uma narrativa enérgica e uma carga emotiva única. E têm, claro, um tratamento lumínico que é simplesmente impressionante e que muitos tentaram copiar", diz ainda Treves.
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A partir de 1600, artistas de toda a Europa foram a Roma para admirar a obra de Caravaggio. Pintores de talento e tão variados como Orazio Gentileschi, Valentin de Boulogne, Jusepe de Ribera e Gerrit van Honthorst imitaram tanto o naturalismo como o extraordinário tratamento da luz inventados por Caravaggio. As telas do mestre italiano e dos seus seguidores foram muito cobiçadas nas décadas que se seguiram à morte dele, em 1610, mas a partir de meados do século XVII esse interesse esmoreceu.
A maior parte das 49 obras expostas em Beyond Caravaggio provém de museus, casas senhoriais, castelos e coleções privadas do Reino Unido e da Irlanda. A rainha Isabel II, por exemplo, autorizou o empréstimo de três quadros que pertencem ao Royal Collection Trust. Outras duas obras integram a colecção dos duques de Wellington.
As Galerias Nacionais da Irlanda (Dublin) e da Escócia (Edimburgo) - que em 2017 acolherão igualmente Beyond Caravaggio, durante algumas semanas -, emprestaram alguns dos quadros mais importantes da mostra, como o arrebatador A Captura de Cristo (1602), de Caravaggio, que ilustra todos os materiais publicitários da exposição. Este quadro de intensidade e drama quase cinematográficas pertence à Comunidade Jesuíta de Dublin e só na década de 1990 foi "redescoberto" como um trabalho original de Caravaggio. Durante séculos julgou-se que se tratava de uma obra de Gerrit van Honthorst, o holandês que no início do século XVII teve muito êxito em Roma imitando o estilo e o dramatismo claro-escuro de Caravaggio.
A maior parte dos artistas expostos são pouco conhecidos, com a exceção, talvez, de Gentileschi, Ribera, Honthorst ou Georges de La Tour, o francês cujo gosto pronunciado pelos jogos de luz e sombras fez dele um dos "caravaggistas" mais originais. O espanhol Jusepe de Ribera viveu muito tempo em Nápoles e é um dos melhores intérpretes do dramatismo humano tão típico de Caravaggio. A mostra inclui dois quadros de Georges de La Tour e outros de Bartolomeo Manfredi, Nicolas Tournier, Antiveduto Gramatica e Mattia Preti que abordam temáticas quotidianas e novos protagonistas - os cupidos, os adivinhos e videntes, os jogos de cartas - introduzidos na arte pela mão de Caravaggio no final do século XVI. Manfredi foi muito importante na divulgação do estilo e do evangelho de Caravaggio (ele foi, talvez, o artista que mais se aproximou daquilo a que poderíamos chamar um "discípulo" de Caravaggio). Além de Manfredi, Beyond Caravaggio revela artistas como Rutilio Manetti, Carlo Saraceni, Valentin de Boulogne ou Giovanni Antonio Galli que talvez merecessem ser mais conhecidos. A tela Cristo mostrando as suas feridas, perturbadora e inquietante, é certamente uma das obras mais impressionantes da mostra.
Outro dos legados mais importantes de Caravaggio foi a extraordinária força da sua narrativa, ao abordar, por exemplo, os temas bíblicos com um novo olhar - e, sobretudo, uma nova luz -, e conseguindo, muitas vezes, esbater a fronteira entre o sagrado e o profano. Duas obras de Orazio Gentileschi, amigo de Caravaggio, demonstram essa influência, assim como uma obra-prima de Nicolas Régnier (São Sebastião atendido por Santa Irene e uma criada).
Seduzidos pela força da obra de Caravaggio, vários artistas europeus continuaram a imitar o estilo do mestre muitos anos após a sua morte. Em meados do século XVII, no entanto, o estilo naturalista de Caravaggio foi rechaçado e adoptou-se então uma corrente pictórica mais clássica. Foram precisos quase três séculos para que o mestre recuperasse a reputação e fossem reconhecidos plenamente os seus méritos. Uma das obras-primas de Caravaggio (A Ceia em Emaús, de 1601) que integram a exposição, por exemplo, foi oferecida à National Gallery, em 1839, simplesmente porque o dono do quadro tentara vendê-la em leilão, oito anos antes, na Christie"s. Ninguém lhe pegou.
A obra de Caravaggio foi considerada, durante muito tempo, como menor. Os críticos não lhe perdoavam a vulgaridade, a sujidade do pecado, o foco na fealdade, no horror e na brutalidade dos excessos. Duas grandes exposições em 1922 (Florença) e em 1951 (Milão) recolocaram o mestre milanês no lugar que merece na história da arte. "Caravaggio foi o primeiro artista moderno. Um artista revolucionário", diz a comissária Letizia Treves. "Hoje em dia ele é admirado universalmente pela sua originalidade e modernidade assombrosa".
Rufia, brigão, desordeiro, amigo da bebida e das mulheres da vida que enchiam o bairro de Ortaccio, em Roma, Michelangelo Merisi da Caravaggio faria as delícias da imprensa sensacionalista do nosso século. Quando, por exemplo, Caravaggio mostrou pela primeira vez a sua Morte da Virgem - um quadro encomendado em 1601 para figurar sobre o altar da nova igreja de Santa Maria della Scala, que o Papa destinara aos carmelitas -, os religiosos não queriam acreditar no que lhes apareceu aos olhos.
Os beatos estavam certamente à espera de uma Madona imaculada e piedosa, mas neste quadro de Caravaggio - que hoje em dia faz parte da colecção do Louvre, em Paris -, Maria está estendida num leito de madeira, coberta com o vestido simples de uma trabalhadora. Tem os pés sujos e o ventre e os tornozelos parecem estar inchados, como que numa fase inicial da decomposição. Os padres ficaram furiosos e recusaram aquele quadro que, de acordo com as suas palavras, exibia uma Virgem "barriguda e deformada que tinha as pernas à mostra e a cara de uma prostituta nojenta".
Iluminados por focos de luz estrategicamente colocados, os quadros de Beyond Caravaggio - repartidos por sete salas pequenas, escuras e intimistas da National Gallery - brilham como cenas de um filme. "Caravaggio foi o pintor que "inventou" a luz cinematográfica. As figuras dos seus quadros tridimensionais parecem habitar quartos muito escuros, iluminados por uma luz única muito forte", escreveu Derek Jarman nas notas publicadas sobre o filme de 1986 que ele realizou sobre a vida e obra do pintor. Caravaggio concebeu um tratamento original da luz - uma luz que se projecta com violência sobre as formas, em contraste carregado com as sombras que povoam os quadros.
Os homens e mulheres dos quadros de Caravaggio não são criaturas imaginárias - são homens e mulheres reais. Sujos, atraentes, calvos, repugnantes, estes eram os italianos e italianas que ele encontrava nas ruas ou nas tabernas de Roma. Apesar de ter nascido em Milão, Michelangelo Merisi cresceu em Caravaggio, nos arredores, e só regressou à grande cidade depois da morte da mãe (o pai, um pedreiro humilde, morrera muito antes), quando ele tinha 18 anos.
Muito do que se conhece sobre o pintor baseia-se nos registos criminais ou judiciais da altura. Aparentemente, Caravaggio era tão hábil com a espada como com a tela e os pincéis e terá passado um ano na prisão, em Milão, depois de se ter envolvido numa rixa que terminou com a morte de um informador da polícia.
No final do século XVI, Caravaggio tornara-se num dos pintores mais famosos de Roma e o seu estilo original era admirado por alguns dos patronos mais ricos e poderosos da Itália. O atraente Caravaggio, no entanto, era um homem de paixões arrebatadas, um folião agressivo que dormia sempre com a espada por perto. Ele nunca deixou de ser um cliente habitual da polícia e dos juízes da cidade.