Sudão. A ideia era Kassala

Mala de viagem (169). Um retrato muito pessoal do Sudão.
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Como fundo, via as montanhas Taka, com o seu horizonte recortado, numa espécie de montanha-russa. O grande "souk" é o mercado onde se vende quase tudo. Os homens vagueiam de turbante e panejados de branco com coletes de cores suaves; as mulheres, com sáris coloridos ou véus pretos. Burros, muitos burros, alguns a ultrapassar a sua capacidade de carga, mas lá se mantêm de pé, como as árvores. Carrinhas abertas com chancelas Toyota e Mitsubishi carregadas de homens. Muitas bicicletas e motorizadas. Barracas brancas ou de verde-claro, com letreiros pintados, onde se vende comida cá fora. Pedi um churrasco de frango, pareceu-me o mais parecido com a comida ocidental, para não arriscar na escolha e preservar o aparelho digestivo. À chegada, eu vira rebanhos de cabras que percorrem aqueles caminhos de pó da terra árida, onde ainda sobra vegetação, e andam dromedários junto a pequenas bacias de água. O mercado é rico de coisas diversas, mas não esconde a pobreza que é tudo o que nos desperta como seu contexto. Porém, o povo vive com um sorriso, o que faz pensar sobre onde estará a fronteira entre a felicidade e a tristeza em cada ponto do mundo, em cada comunidade rica ou pobre. Seria eu feliz se tivesse nascido ali? Certamente que sim, pois não conhecia o mundo como o conheço. É essa linha de conhecimento que separa a felicidade da tristeza. O que acontece é que também há tristezas em comunidades ricas. Kassala fica na parte leste do país, perto da fronteira com a Eritreia. Em toda a viagem desde a capital, o cheiro é intenso a África. Fui ao encontro daquela gente que vive num país pobre e em conflito permanente. Um poema de protesto num Sudão sem luz foi a foto do ano da World Press Photo 2020. O fotojornalista japonês Yasuyoshi Chiba, da France-Presse para a África Oriental, ganhou o prémio principal desse ano com a imagem de um rapaz recitando poesia numa manifestação contra o "blackout" energético imposto pela junta militar do Sudão. Perante as injustiças do mundo, há muitas maneiras de não dizer nada, dizendo; mas só a poesia é verdadeira. Tive contacto com a poesia do Sudão através de Al-Saddiq Al-Raddi, que já conquistou muito público, "pela sua abordagem imaginativa da poesia e pela delicadeza e franqueza emocional das suas letras", dizem os críticos. Na leitura da sua poesia encontramos a diversidade cultural e linguística do Sudão, a sua complexa história e aquilo que devia ser o futuro do seu povo. Em "Song", está isso demonstrado, quando de frente para o vento, numa tempestade de poeira, vestido no seu manto e usando um chapéu que não pode fazê-lo desaparecer, um homem magro examina o horizonte, querendo colher flores, mas impedido por estar num beco estreito entre montanhas de lixo. Ele anseia por levantar voo. - "Song/ Facing down wind in a dust-storm/ wrapped up in his cloak/ and wearing a hat that can"t make him vanish -/ this skinny man/ scans the horizon/ gathering - but not quite yet - flowers/ until the moment you meet/ (... but stuck in this narrow alleyway/ among mountains of rubbish/ he longs to lift up his beak/ unfurl his wings/ and take flight...)".

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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