"Subi para o camarim e ainda ouvia as palmas"

Marcelino Sambé, o bailarino português no Royal Ballet, dança <em>A Bela Adormecida</em> em Lisboa com a Companhia Nacional de Bailado
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Viram Marcelino Sambé dançar? Viram como salta, como gira, como por vezes ri enquanto faz tudo isso? Hoje tem 21 anos. O seu nome aparece nos cartazes do Royal Ballet, onde fez escola durante dois anos e, ao contrário do que é habitual, ao terceiro já estava na companhia. Há quem vá ao ballet no londrino Covent Garden naquele dia, porque é naquele dia que o Marcelino sobe ao palco.

Nestes dias, há quem vá ao Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, porque é lá que Marcelino se junta à Companhia Nacional de Bailado (CNB) para dançar A Bela Adormecida. Hoje e no domingo é o príncipe. Ontem dançou o pas de deux do Pássaro Azul com Maria Barroso, a irmã que lhe vem da família que há anos o acolheu e fez de si um deles. Neste ano não estará cá para o Natal, porque no dia 24 há de estar no palco da Royal Opera House a dançar O Quebra-Nozes. O seu primeiro papel principal lá, conta.

Saiu de Portugal há cinco anos. Era o miúdo que vinha do Alto da Loba, em Paço dArcos, e que impressionou todos no Conservatório Nacional. Dali partiu para os concursos internacionais como o Prix de Lausanne ou o USA International Ballet Competition em Jackson, Mississippi, EUA, onde recebeu uma ovação em pé de sete minutos. Dançava Que Todos os Ais São Meus, coreografia de Catarina Moreira. "Nunca me vou esquecer. Eu disse: tenho 15 anos, não acredito que isto está a acontecer. Subi para o camarim e ainda ouvia as palmas."

I ato: apresentação do bailarino

Às dez da manhã fez, com todos os outros bailarinos, a aula de aquecimento. Já sobre o palco inclinado do São Carlos. Às 11.30 ensaiou com Isadora Valero, a princesa Aurora d" A Bela Adormecida. Cerca de uma hora depois, para que conversássemos, sentou-se num camarote com vista para o corpo de baile que ensaiava no palco e, por assim dizer, apresentou-se.

"A Catarina Moreira, minha professora de contemporâneo no Conservatório, sempre me disse que a minha maior qualidade é ser espontâneo. Há muitos bailarinos fantásticos que são muito técnicos. Se eu estou numa festa e estou a dançar com uma música de kizomba ou assim, eu não estou a pensar no que estou a fazer, simplesmente sai do corpo. Quando olho para bailarinos como o [Rudolf] Nureyev é isso que vejo: uma naturalidade, uma espontaneidade." Diz que foi já no Royal Ballet que compreendeu que só será "um grande bailarino se tiver uma ótima vida social, amor, amigos. [Para dançar] tenho de saber o que é estar chateado com alguém, apaixonado, triste, viver um momento fantástico. Há muitos bailarinos que são muito bons tecnicamente, mas há essa falta de balanço. E em palco vê-se logo quem está a viver o momento".

Gosta do Julio Bocca porque ele "dançava como se estivesse a falar". Conta que nunca esteve "muito interessado naquela parte [do ballet] de: olha, aquele rapaz faz sete pirouettes ou salta e faz triplos cabrioles [salto em que os dois pés de juntam no ar]. Nunca me interessei por isso. Sempre achei um pouco gratuito. Tem de vir naturalmente. Se isso faz parte da coreografia, trabalha-se para sair muito bem".

II ato: o palco como um salsa club

No bailado A Bela Adormecida isso faz parte da coreografia. E então seria preciso descrever a reação dos miúdos de escolas do primeiro ciclo ao secundário que, na quarta-feira, assistiam ao espetáculo. Muitos deles crianças pequenas, riem e gritam qualquer coisa quando Aurora e o príncipe se beijam. Aplaudem entre as pirouettes de Marcelino. Mas ele está imperturbável. E parece ser sempre assim. Apesar de tudo. Isto é, apesar de ter chegado de Londres na noite anterior e de pouco tempo ter tido para ensaiar com Isadora - ela foi lá por quatro dias e ele veio cá pelo mesmo período de tempo -, ou de trabalhar das dez às dez no Royal Ballet. Apesar do palco inclinado do São Carlos e das ganas de "querer dar o melhor espetáculo que possa ao povo português".

Antes do espetáculo, no camarim, Marcelino maquilha-se enquanto conversa com Lourenço Ferreira, seu antigo colega do Conservatório, e o príncipe do bailado no início do mês. A certa altura fala da peça em que está a trabalhar com o coreógrafo Christopher Wheeldon no Royal Ballet, Portrait of Madame X. De figurino já vestido, sai, cumprimenta quem ainda não viu, tira uma ou outra selfie.

A Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a batuta do maestro Pedro Carneiro, já se fazia ouvir e nós percorríamos os corredores do São Carlos até ao Salão Nobre. Marcelino só entrava em palco depois do segundo ato. Parecia, outra vez, imperturbável. "A minha rotina antes de ir para palco é super desligada do que vou fazer. Há grandes bailarinos como a Natalia Makarova ou o Anthony Dowell que iam para palco super nervosos, rezavam, batiam no chão, era uma coisa muito sofrida. Para mim tem de ser o contrário, tem de ser como se eu fosse encontrar os meus colegas e fôssemos todos sair e fôssemos todos dançar a um salsa club." Diz salsa club e não "clube de salsa" porque fala assim. Isto é, num mesclado de português e inglês. Assim como, quando fala da Ópera de Paris, e de como eles agora estão a dançar A Sagração da Primavera, de Pina Bausch, lança: "Se alguma vez eu fizer guesting [for bailarino convidado] na Ópera de Paris, you know I"ve made it [sabes que vinguei]."

III ato: o corpo e o futuro

Fala da luta de um bailarino com o corpo. Mesmo que, enquanto vemos um bailarino dançar, por vezes nos esqueçamos de que não seria suposto que a nossa perna subisse até àquele ponto ou que o nosso salto atingisse aquela altura. "Quando era criança tive sempre muitas possibilidades de flexibilidade, quando comecei a crescer o corpo fica mais forte. Tenho um pouco dificuldade em me adaptar ao meu novo corpo. Mas tenho descoberto coisas muito melhores, salto muito mais do que quando era criança. Mas é uma luta."

Essa luta tem ainda outra frente, a do futuro. Mesmo que Marcelino tenha apenas 21 anos. "Penso sempre: será que [no futuro] vou ter ancas para andar normalmente, sem coxear na rua? Vou ter de ter uma anca plástica ou assim? E eu quando era criança abusei, abusei da minha flexibilidade, fazia espargatas na cadeira. Devagarinho começo a sentir: a minha anca já não é tão flexível como era. É por isso que é preciso ser muito calmo nas aulas, não abusar. Eu quero saltar a toda a hora, mas é preciso ter cuidado com os tendões e isso tudo." Fala como quem explica como se refreia a manifestação da alegria.

Não há superstições em relação ao futuro, de quem não quisesse falar dele com medo que não se concretizasse. Ainda outra vez, também aqui Marcelino parece imperturbável. "Quero conquistar a minha carreira no Royal Ballet. É um jogo muito difícil numa companhia tão grande. Há egos, pirâmides, pessoas que já estão lá à espera daquele papel." Pergunta-se, por isso, se é difícil encontrar um amigo numa companhia como aquela. "Tenho um ou dois colegas da companhia que são incondicionais." Mas a maioria dos amigos, conta, "é de fora". É-lhe necessário "encontrar aqueles amigos que trabalham numa empresa. Ter aquele shift de pessoas normais, com vidas normais, corpos normais, alimentação normal".

A propósito, diz que pensa no nadador olímpico Michael Phelps quando pensa na sua alimentação. "Quando eu tenho 15 minutos, como. Há dias em que sou capaz de comer três almoços. Por exemplo, começo com uma sanduíche de atum, depois dois peitos de frango com arroz, depois uma quiche. As pessoas ficam sempre: uau! Tenho muito músculo, tenho de manter isso. Perguntam-me sempre: "Como é que tens tanta energia?" Com a comida."

E haverá quem se pergunte como é a relação entre um Marcelino Sambé e um corpo de baile. Pronunciada, a pergunta soa confrangedora, mas ele, mais uma vez, não se importa. Responde a tudo como se lhe perguntássemos o nome. "Sempre pensei: eu quero sair do corpo de baile. E quando fui promovido logo no início, pensei que tenho tanta sorte. Mas há pessoas que estão contentes nessa posição, porque é uma grande pressão chegar aqui e fazer o príncipe. Há pessoas que gostam de estar ali e são muito dedicadas ao corpo de baile. Porque se ele for mau, estraga um espetáculo todo."

"Isto vem de pequeno. Há aquele clique. Dá para ver desde pequeno quem quer. É como quando se está a treinar para ser cantor de ópera, sabe-se desde o início que há aquele que vai ser solista e o que vai ser do coro. É a lei da vida." Viram Marcelino Sambé dançar?

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