As crianças, às vezes, podem ser cruéis. Lisboa, final dos anos 1990, e num certo dia o novato no liceu é recebido no recreio pelos colegas, que o estendiam embalagens de arroz. "Ouvi dizer que estás a passar fome", justifica um deles..A guerra ainda arrasava os Balcãs e as notícias falavam em morte, dor e fome, mas apesar de a Moldávia estar à margem do conflito, o pequeno Stanislav aprendeu na escola que um grão de arroz, para além de hidratos de carbono, proteínas, sódio e fibras, contém sarcasmo. Naquele tempo, a palavra bullying era tão desconhecida como Quichinau, a capital moldava, e restou a Stanislav engolir o arroz e a provocação a seco, seguir a tática dos imigrantes, do silêncio, de se evitar o confronto, de usar o lego do espírito para montar uma estratégia de resistência, contrariar as expectativas e vencer..E o pequeno Stanislav venceu.Quem o vê agora, no alto dos seus 32 anos e, no mais alto ainda, dos seus 1,90 metros, dificilmente imagina que a trajetória de êxito do dono da rede de cafetarias Fábrica, quatro lojas em Lisboa, uma no Porto e a reputação do melhor grão em ambas, fora forjada pelo miúdo acuado no pátio do liceu, anos atrás, quando Stanislav decifrou a mensagem oculta na pretensa solidariedade dos colegas: se a realidade não lhe parece ideal, mais inteligente do que confrontá-la é construir uma realidade ideal para si. "Pouco depois, era o melhor aluno da sala, aquele que a professora aponta como o exemplo para os demais, e as provocações dos colegas foram trocadas pelos pedidos de cábula", pontua, equilibrando o corpo na cadeira, a chávena com café coado a fumegar por entre as mãos..Stanislav Benderschi é empresário, mas para os olhos de um escritor de romance policial daria um bom personagem de um livro de espionagem, uma espécie de lisboeta que veio do frio. Nasceu na Moldávia ainda sob a égide da União Soviética, em 1988, quando um muro dividia Berlim e uma cortina de ferro, o mundo. Ao contrário de muitos filhos das ex-repúblicas soviéticas, não guarda rancores da "Mãe Rússia", pelo contrário, quando não tem paciência para esticar o assunto, geralmente apresenta-se como russo, escudado pelo idioma que fala fluentemente, como o romeno e o português "sem sotaque", como se orgulha de ressaltar - embora seja uma meia-verdade -, além de inglês, espanhol, alemão e polaco, um repertório idiomático que faria inveja a muitos espiões das ficções..O moldavo chegou a Portugal trazido pelos pais, comerciantes que deixaram Quichinau logo após o ocaso do regime soviético, assustados com mafiosos que ofereciam serviços de proteção contra os perigos que eles próprios causavam. Após terminar o secundário, já adaptado à segunda pátria, partiu em "missão" internacional, primeiro na ensolarada Barcelona, depois na cinzenta Nuremberga. Não aprendeu a desarmar ogivas nucleares, é verdade, mas a operar as não menos intricadas cafeteiras e máquinas de torra, mecanismos igualmente temperamentais e que, como os mísseis das aventuras de 007, podem aquecer as coisas se o botão correto não for carregado..Foi justamente em Nuremberga que Stanislav voltou a sentir o estranhamento diante de uma realidade incómoda. "Trabalhava numa multinacional do setor tecnológico e, no início de dezembro, as lâmpadas da decoração da árvore foram levadas para inspeção até serem liberadas... cinco dias após o Natal", diz. Um conto natalício que ilustra o rigor teutónico, mas como o Diabo está nas pequenas coisas, assim que lhe estenderam a embalagem com as lâmpadas coloridas depois da visita do Pai Natal, Stanislav viu-se transportado para o pátio do liceu da infância, com os colegas, os pacotes de arroz e tudo mais. Era a hora de se montar uma nova estratégia.."Até então, sabia zero de café", confessa. Um dia, o interesse surgira subitamente, no percurso entre o escritório e o refeitório da empresa, quando o aroma intenso do grão moído na hora se misturou à densa bruma do inverno alemão. Como um perdigueiro, seguiu o rasto até à cafetaria vizinha ao trabalho. Ao cruzar as portas, hipnotizado pelos vapores e os roncos das máquinas que operavam sob pressão, vivenciou uma epifania. "Descobri o que iria fazer." E assim o fez, não em Nuremberga, mas no que considera ser a sua verdadeira casa, Lisboa..Sereno, sentado na minúscula cadeira, cercado pela miscelânea de grãos, Stanislav mira o fundo da chávena nas mãos tentando avistar por entre o pó do café as memórias do liceu, desta vez para ilustrar uma fragilidade do ensino português. "Os professores dizem aos alunos que, se não tirarem boas notas, não conseguirão emprego, como se o caminho natural fosse ser empregado. Não se educa para empreender", acredita. Essa espécie de sebastianismo corporativo, com portugueses sempre à espera de um líder - o patrão - para tomar iniciativa, não lhe parece salutar. "Numa reunião, o normal é que muitos apontem o problema, mas que nenhum indique a solução.".Talvez isso o tenha levado a relativizar as objeções dos portugueses sobre o imigrante de um país, mais conhecido pela beleza das mulheres e a eficiência dos operários da construção civil, ousar abrir uma cafetaria em Lisboa, ainda mais dedicada à torra de grãos especiais. "Em Portugal, quando se quer abrir um café, liga-se para a Delta e, no outro dia, está tudo instalado, de graça. Só numa das minhas máquinas, investi dez mil euros", conta, orgulhoso por ter contrariado as apostas, o que lhe fez adotar um novo mantra. "Agora, quando as pessoas começam a dizer que a ideia não vai dar certo, é o sinal de que devo insistir nela.".A insistência levou-o recentemente ao Brasil, em busca de grãos ainda mais especiais. Foi a oportunidade de conhecer um país que aprendeu a ver com outros olhos. "Cerca de 90%, ou mais, dos funcionários são brasileiros", revela. Nem sempre foi assim. No início, chegou a apostar em eslavos e nos portugueses, mas esbarrou num detalhe que aponta como crucial. "Os brasileiros levam o trabalho a sério, mas fazem-no com alegria e aprendi a valorizar a companhia de uma pessoa feliz", revela, com o exemplo de quem encontrou muita eficiência e poucos sorrisos na experiência alemã..Além das cafetarias, Stanislav geriu um restaurante especializado em gastronomia russa, nos arredores da Liberdade, mas foi obrigado a encerrar as operações, não por falta de clientela - pelo contrário, esteve sempre cheio, apesar dos menus com o valor inicial a 15 euros, contra a metade do preço da concorrência. Quando o primeiro dos três herdeiros nasceu, porém, teve de escolher entre um dos dois "filhos". Não foi uma decisão fácil. "Mas o restaurante é um bebé que não cresce", resume, ciente desde os tempos do liceu de que as crianças, às vezes, podem ser bastante cruéis..Escritor, jornalista e lisboeta vindo de fora