"A Marinha não envia navios para missões impossíveis"

O Chefe de Estado-maior da Armada, Gouveia e Melo, falou aos militares da guarnição do NRP Mondego, o navio que no passado sábado não cumpriu uma missão porque 13 dos seus militares se recusaram embarcar alegando questões de segurança
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Num discurso de oito páginas, a que o DN teve acesso, o Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), Gouveia e Melo, falou olhos nos olhos aos militares da guarnição do NRP (Navio da República Portuguesa) Mondego e deixou claro que não perdoará a "indisciplina", nem os danos causados à imagem da Marinha e do país.

Num tom emotivo que lhe é característico, Gouveia e Melo não deixou de revelar a tristeza que lhe provocou a situação e lembrou que ele próprio conhece as dificuldades da vida de marinheiro e melhor que ninguém sabe da falta de manutenção dos seus navios.

"No dia 11 de março, no último Sábado, neste cais, formaram militares do NRP Mondego recusando-se a embarcar e a cumprir as ordens legítimas do seu comando e dessa forma impediram que o navio pudesse realizar a missão determinada pela Marinha. Este ato, que me entristece profundamente enquanto Comandante da Marinha, depois de realizado, não tem retorno, é como se ganhasse uma vida própria, uma substância que já não é possível ignorar. A Marinha teve conhecimento dele, o país teve conhecimento dele, os nossos aliados, mais tarde ou mais cedo, também terão certamente notícia dele. É assim, pela sua dimensão e significado, algo que jamais poderá ser ignorado e esquecido", disse o CEMA.

Gouveia e Melo sabe "que operar no ambiente inóspito, que é o mar, e estar confinado em espaços exíguos, é desafiante, é uma batalha diária, que só se vence com uma verdadeira vocação". "Sei, porque sou um de vós", frisou.

Reconheceu que aquele navio tem "executado inúmeras missões e, por isso, estão naturalmente submetidos às provações e desafios" que descreveu.

No entanto, sublinhou, "um militar de uma guarnição de um navio de guerra distingue-se de um tripulante de um navio mercante não pelas suas qualidades enquanto marinheiro, pois essas são importantes e fundamentais para ambos, mas precisamente pelas suas qualidades militares". Uma delas, "é sem dúvida a disciplina".

E sobre a disciplina o CEMA assinalou que faz parte daqueles valores "intemporais e imutáveis no seu núcleo mais profundo, núcleo esse que nunca poderá ser colocado em causa sob perigo de desmoronamento do próprio edifício militar".

Num conjunto de perguntas de retórica analisou a decisão dos militares. "Foi este ato realizado porque estavam em causa ordens ilegítimas? Contrárias às nossas leis? Contra os nossos juramentos? Contra a nossa democracia? Contra a decência humana? Contra a nossa população? O que estava realmente em causa justificava um ato tão extremo e definitivo? Fui informado que a causa residia no receio que o NRP Mondego não conseguisse realizar a missão atribuída, pondo ainda em causa a vida dos militares da guarnição. Esta avaliação foi feita por quem tinha o dever de a fazer? Por quem tinha a competência e responsabilidade para tal? "

A resposta, afirmou Gouveia e Melo "é um rotundo não!" O comandante, lembrou "último responsável pela segurança da sua unidade, o que disse é que apesar de limitado e nas condições em que lhe foi atribuída a missão, o NRP Mondego estaria pronta para a executar.

O CEMA afirmou que os 13 militares "substituíram-se aos oficiais de bordo, à estrutura de Comando e ao próprio Comandante e, alegando o dever de tutela sob a guarnição e sobre o navio, decidiram com a sua ação impedir o NRP Mondego de navegar e cumprir com a missão atribuída. Mais, mostraram que não confiavam no discernimento, capacidade e conhecimentos do respetivo comandante e linha de comando. Ainda, nessa avaliação arrastaram, atribuindo-lhes o ónus da incompetência, falta ao dever de tutela e incapacidade para avaliar a situação, as estruturas de manutenção e operação que superintendem tecnicamente e comandam respetivamente os navios no mar".

"Sinceramente, não vos consigo entender, nem perceber bem as vossas motivações e certamente a vossa interpretação peculiar do dever de Tutela e de Disciplina", asseverou.

"A Marinha não envia os nossos navios e guarnições para missões impossíveis. Nem colocamos em risco as nossas guarnições de forma fútil, ligeira, irresponsável, ou mesmo ignorante. Somos uma organização com 706 anos de história e cultura organizacional, e não nos são conhecidos casos de acidentes resultantes de más manutenções, ou más avaliações do estado de segurança dos nossos navios e respetivas capacidades. Cuidamos das nossas mulheres e homens, mas também fique claro que damos tudo o que temos e percorremos a tal milha extra, sempre que necessário", afiançou.

Gouveia e Melo não deixou de reconhecer que "é de conhecimento dos poderes instituídos o estado real da Marinha, pois nunca faltámos ao nosso dever de informar quem de direito, de forma clara e transparente, com diligência e veemência", referindo-se à tutela do ministério da Defesa Nacional.

"Se estou contente com o Estado da Esquadra? Não! Se estamos a trabalhar empenhados, todos, em alterar esse estado de coisas? Sim!", assinalou.

Deixou ainda neste seu discurso um aviso sobre o tempo que ainda pode demorar a restabelecer os navios. "Pode o estado da Esquadra mudar instantaneamente? Não! Requererá muito esforço de todos, muita imaginação, determinação, paciência e dedicação. Estamos todos empenhados e aqui incluo necessariamente a Tutela. São os recursos suficientes? A minha resposta é simples e digo-vos a todos vós, Marinheiras e Marinheiros desta nossa Armada: São aqueles que o país nos pode disponibilizar e com os quais faremos o máximo que pudermos para garantirmos a Portugal o "Uso" do Mar".

Recorde-se que após o incidente, a Marinha anunciou que vai avançar com processos disciplinares aos militares e ordenou uma inspeção às condições de segurança do NRP Mondego.

Entre as várias limitações técnicas invocadas pelos militares constava o facto de um motor e um gerador de energia elétrica estarem inoperacionais.

A Marinha, entretanto, confirmou que o NRP Mondego estava com "uma avaria num dos motores", mas referiu que os navios de guerra "podem operar em modo bastante degradado sem impacto na segurança", uma vez que têm "sistemas muito complexos e muito redundantes".

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