Sou "fascista" e apoio a independência da Catalunha
Se tivesse de escolher entre esquerda e direita, diria: depende do contexto. Em matéria de liberdades e direitos, sou liberal ou libertário; nos assuntos económicos, rejeito o capitalismo selvagem, mas não tenho posições radicais contra o capitalismo. Considero-me, enfim, de centro ou de centro-esquerda. Abomino na mesma medida Pinochet e Ceausescu, a Venezuela de Maduro e a Espanha de Franco.
No entanto, para a maioria dos independentistas catalães (e muitos que não o são mas apoiaram o referendo antidemocrático de 1 de outubro) sou pura e simplesmente fascista. Nos dias que correm, e tendo em conta a profunda polarização na Catalunha, não é desonra: duas das maiores figuras da cultura espanhola contemporânea, a cineasta Isabel Coixet e o músico Joan Manuel Serrat (ambos catalães), são constantemente acusados de serem fascistas por não comungarem com "o pensamento único do independentismo", para usar as palavras de Coixet.
A prolífica realizadora suspeita de que o estigma surgiu depois de ter assinado um manifesto a favor do "bilinguismo real" - estatuto igualitário para o castelhano, discriminado em muitas instituições catalãs. Serrat recusou ir à Eurovisão em 1968 por não poder cantar na língua autóctone, foi perseguido pela censura franquista e esteve exilado no México. Dias antes do referendo, o autor de Mediterráneo (melhor canção espanhola de sempre segundo a Rolling Stone), expressou a sua opinião sobre a consulta: "Não é transparente, não pode representar ninguém." Também disse que aqueles que o "tacham" de fascista "desconhecem o fascismo".
Num artigo publicado nesta semana no El País, dois jornalistas desfiam razões para não participar mais nos "debates" da TV3 e da Catalunya Ràdio. "A tese oficial na Catalunha é que esta é uma nação natural, telúrica, essencialmente boa, que há pelo menos três séculos vive uma situação de opressão colonial insustentável dentro de um Estado artificial, pérfido e retrógrado - Espanha - do qual devemos escapar. Para tal efeito, vale tudo. Fala-se de Franco a toda a hora e em qualquer formato".
Nas tertúlias "monográficas" organizadas por estes órgãos de comunicação públicos (ambos subsidiados pela Generalitat, o governo catalão), os autores são sistematicamente acossados pelos outros convidados, pelo "moderador" e ainda pelo público. O objetivo é "projetar a ideia" de que defender a unidade de Espanha é "uma posição minoritária, inclusive marginal, na sociedade catalã". "Nestas condições", avisam Ignacio Martín Blanco e Joan López Alegre, "quem discordar, por mais aguerrido que seja, acaba sendo um colaborador necessário, ou mesmo o idiota útil do projeto separatista".
Não deve ser por acaso que, nas longas discussões das últimas semanas, alguns dos meus amigos (mas também perfeitos desconhecidos) têm tentado desprestigiar o jornal espanhol de referência. O El País nasceu em 1976 e rapidamente se transformou num dos grandes dinamizadores da incipiente democracia. Foi um dos primeiros de âmbito nacional a ter conteúdos em catalão e sempre promoveu uma sociedade plural e progressista. No ano passado assinalou uma trajetória de quatro décadas que o coloca, por méritos, entre os melhores do mundo.
É razoável pensar que o diário em língua castelhana mais lido do globo não precisa do meu apoio, mas também não deveria ser necessário lembrar a legitimidade da Constituição ratificada por quase nove em cada dez espanhóis em 1978, incluindo a esmagadora maioria dos catalães (com taxa de aprovação superior à registada em Madrid, por exemplo).
E, no entanto, é preciso fazê-lo. Apesar de injustos, os ataques vindos da Catalunha são compreensíveis na medida em que são dirigidos, ou estão condicionados, pela narrativa da Generalitat e de organizações afins como a Assembleia Nacional Catalã (ANC) e a Òmnium Cultural.
Muito mais difíceis de digerir são opiniões que circulam em Portugal. João Miguel Tavares, mesmo reconhecendo as deficiências do referendo e a aposta dos independentistas "na violência das autoridades espanholas para conseguirem nas ruas aquilo que possivelmente não conseguiriam nas urnas", escreve que "a utilidade política" do "argumento" da Constituição "é nula", porque a "objeção jurídica" teria sido utilizada para "proibir e combater todos os movimentos independentistas durante os séculos XIX e XX".
JMT deveria saber, em primeiro lugar, que a Constituição não é um "argumento": é a norma suprema do ordenamento jurídico espanhol. E as Nações Unidas reconhecem o direito à autodeterminação apenas em situações muito específicas, concretamente a dos "povos submetidos à dominação colonial ou a outras formas de dominação ou ocupação estrangeiras". Finalmente, os habitantes da Catalunha não constituem um "povo" (como diz, por exemplo, Daniel Oliveira) e sim uma sociedade moderna, rica e complexa que não só não está subjugada como vive numa das regiões mais ricas e autónomas da Europa.
Mais grave é a justificação de JMT da violência: "(...) só através da violência a independência poderá algum dia ser alcançada. É isso que os espanhóis desejam que venha a acontecer na Catalunha?" Ainda em relação ao recurso à força: a tentativa de impedir o referendo foi, de facto, violenta, mal planificada e pior gerida pelo executivo (em cumprimento de ordens judiciais, convém não esquecer). Contudo, o principal responsável pelo desastre foi a Generalitat, porque a consulta era uma provocação e porque a polícia catalã podia ter impedido o confronto e preferiu assobiar para o lado.
No rescaldo da intervenção, o governo catalão falou em "quase 900 feridos", mas essa contagem (divulgada por uma das partes interessadas) fazia alusão a todas as pessoas que tinham recebido atenção médica, a maioria devido a "contusões, enjoos e ataques de ansiedade". Dois dias mais tarde, e de acordo com a própria Generalitat, havia quatro hospitalizados, dois deles graves: um teve um enfarte, o outro recebeu o impacto de uma bala de borracha num olho. As forças de segurança espanholas contabilizaram, por sua vez, 39 agentes com "ferimentos de alguma consideração" e mais de 400 incluindo as "contusões e dentadas".
É exagerado, portanto, falar numa "reação brutal de Madrid", como faz Daniel Oliveira. O colunista do Expresso descreve como "democrática" a via escolhida pela "Catalunha" para desafiar "Madrid", mas não pode ser democrático um plebiscito que não cumpre as mínimas garantias formais e substanciais. Por outro lado, não foi a "Catalunha" que organizou a consulta, mas uma coligação que nas últimas eleições catalãs, em 2015, não obteve um apoio maioritário (48% dos votos) e que violou as normas do Parlamento catalão para ratificar as leis do "referendo" e da "desconexão" com a Espanha .
Oliveira insiste em identificar a estratégia do atual governo catalão com a vontade unívoca de "um povo". No entanto, basta consultar a mais recente sondagem da Generalitat (julho de 2017) para comprovar que as opiniões são diversas: 57,5% dos catalães querem que a Catalunha continue ligada a Espanha de alguma forma; os independentistas somam 34,7% das preferências.
Chegados a este ponto, é escusado dizer que não sou a favor da independência, tal como não me considero fascista. Acredito que uma separação nestes moldes - unilateral, precipitada e trapaceira - seria um erro que causaria danos irreparáveis a milhões: na Catalunha, em Espanha e no resto do mundo.
Dito isto, sou a favor do diálogo, das reformas e da democracia sem subterfúgios. Se, num futuro próximo ou longínquo, houver um referendo de independência pactuado e com garantias, e o resultado mostrar que uma maioria clara dos catalães prefere sair de Espanha, terei de aceitar a evidência de melhor ou pior grado. Por mais que me aborreçam as fronteiras e goste do "Estado social e democrático de direito" em que cresci, prefiro o divórcio amigável a uma convivência infernal sob a égide maligna do nacionalismo.
Jornalista