Gonçalo Reis: "Sou de centro-direita, mas trabalho muito bem com a criatividade da esquerda"

Almoço com Gonçalo Reis, Presidente da RTP
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"Foi bom, obrigado. Gosto muito destas entrevistas. Leio sempre, todas as semanas no DN. E sou um fã do formato original do Financial Times, o Lunch with the FT. Até mandei vir o livro, porque vale muito a pena. É uma coletânea com as melhores entrevistas."

A despedida não podia ser mais calorosa. Gonçalo Reis, presidente da RTP, rosto aberto e sorridente, levanta-se da mesa. Dirigimo-nos para a porta da Bica do Sapato, onde entrámos uma hora e 40 minutos antes. Trava o passo. Um funcionário traz-lhe o casaco guardado no bengaleiro, que o gestor veste por cima do impecável fato escuro. "Muito obrigado, sôtor. Até para a semana", despede-se o empregado do restaurante. A sala, que esteve longe de encher, está agora vazia. Mas, façamos rewind, e comecemos pelo início.

"Pode ser na Bica, claro", diz-me o CEO da televisão pública, uma semana antes quando, telefonicamente, combinamos o almoço. Já sentados à mesa, Gonçalo Reis explica-me a dimensão do "claro". "Esta casa tem sido a minha base em vários momentos da minha vida. É agora na RTP, até pela proximidade [o restaurante fica em Santa Apolónia, a menos de cinco minutos da sede da televisão pública], mas foi também no período em que estive na Euro RSCG [agência de publicidade sediada no Parque das Nações, ali a dois passos]. Tem boa comida, tem bom ambiente, tem uma certa contemporaneidade." A cumplicidade com a casa é tão grande que, à chegada da ementa, o gestor nem a abre. "Têm o atum, não têm?", pergunta à empregada que, diligentemente, já lhe enche o copo de água das Pedras, que nunca chegou a ser pedida. "Eles já conhecem os meus gostos", diz-me com um sorriso. A Bica tem atum para o "sôtor", sim. "Vão querer escolher um vinho?" Que não. Ficamos na água. "Não sou muito de vinho", confidencia-me Gonçalo Reis, assim que a empregada se afasta. "É claro que se estou numa situação especial, ou num jantar mais formal, acompanho, mas fora disso, não tenho hábito", explica.

Pela segunda vez na RTP, primeiro como vice-presidente de Almerindo Marques, entre 2002 e 2007, e agora, desde 2015, como presidente, o gestor encontra diferenças. "A primeira passagem foi um momento de reestruturação pura e dura: a reforma financeira, a fusão da rádio e da televisão, o encerramento das empresas participadas, as novas instalações", recorda. Hoje, reconhece, os tempos são outros: "mais desenvolvimento de conteúdos, aposta no digital, reposicionamento da RTP". "É bastante mais interessante", admite.

Gonçalo Reis é juiz em causa própria. "Acho que o nosso grande mérito é termos definido uma linha orientadora para a RTP, que acrescenta alguma coisa ao panorama audiovisual, que tem personalidade, identidade e carácter." Este caminho, diz, "foi bem recebido internamente". "As pessoas reveem-se nesta missão clássica da empresa. E quando assim é, é mais fácil dar o passo seguinte, que é mobilizar as equipas internas, reunir talento e fazer com que as coisas aconteçam", assegura.
Inovação, risco e qualidade são características que o gestor quer ver plasmadas na empresa pública de media. "É isso que faz sentido e o público percebe isso." E as audiências? "Estou tranquilo quanto a isso. Todas as direções da RTP que foram escravas das audiências não deixaram legado. Perderam-se na espuma dos dias e nas setinhas para baixo e para cima das revistas da especialidade." O presidente garante não interferir nos conteúdos, mas deixa claro o que diz a um diretor quando o encontra num dilema: "Digo-lhe sempre: "siga as suas convicções, vá atrás daquilo em que acredita". Só assim é que vale a pena estar na RTP."

Sem se deter, Gonçalo Reis deixa claro o seu papel: "A minha função é precisamente essa: afastar as equipas dos fantasmas das audiências. Não tem de haver medo. Estou lá para fomentar a qualidade, para puxar para cima, para motivar, para levantar o moral. Se quiser, sou 50% de estratega e 50% de cheerleader. O meu papel é ser um cheerleader, não tenho paciência para os pessimistas. Não gosto daquelas pessoas que vêm ter comigo cheias de carga negativa!"

Gonçalo Reis diz que essa sua mentalidade não é de agora. "Sempre tentei ser assim na minha vida profissional. Nos vários sítios por onde tenho passado, sempre tentei fixar uma ambição daquilo que se pretende e depois mobilizar as equipas para alcançarmos esses objetivos." Mesmo nas missões mais difíceis, como na primeira passagem pela RTP ou na Estradas de Portugal, para onde seguiu em 2007 com Almerindo Marques, reestruturando outra empresa pública. Um currículo que lhe valeu da Cresap (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública) o rótulo de gestor com falta de sensibilidade social.

São 13.48 e a sala da Bica do Sapato está longe de estar cheia. Três mesas, todas junto à janela, com a vista deslumbrante para o Tejo, estão ocupadas. As outras, impecavelmente montadas, esperarão pela hora do jantar. Estamos "na mesa do sôtor", estrategicamente colocada num dos cantos do espaço. Foi assim que ma definiram, assim que cheguei, cinco minutos antes do presidente da RTP. "Sim, normalmente ocupo esta mesa, mas às vezes vou para outra", condescende, com um sorriso. Gosta de azeitonas, vai depenicando aqui e ali, mas não toca no pão. Talvez seja esse, para além dos genes, o segredo da sua forma física, traduzida na figura esguia de mais de um metro e noventa. "Tenho algum cuidado com a alimentação, mas não sou um escravo dessas coisas. Faço o possível por me sentir bem." A falar de si, nota-se, sente-se menos à vontade. "Corro duas vezes por semana, à noite. Serve para relaxar, depois do dia de trabalho. Dantes fazia as meias maratonas, 21 quilómetros. Agora fico-me pela metade", conta.

O almoço chega, enfim. Entregamo-nos ao peixe. "Gosto muito deste atum mal passado, mas eles aqui têm um ótimo bacalhau e no verão umas saladas excelentes. E têm uns pastéis de massa tenra magníficos." Reconhece que é "um bom garfo, mas não fanático". Cozinhar é que nem pensar. "Num dia em que tiver de cozinhar para os meus filhos, não cozinho. Temos de ir fora", reconhece divertido este homem de 47 anos, pai de três filhas, nove, sete e cinco anos, e um filho de um ano.

"A minha vida continua absolutamente normal. Faço literalmente tudo aquilo que fazia antes de ser presidente da RTP, só que faço em doses mais curtas. Continuo a ler, a ir ao cinema, a ir às exposições de arte e às galerias. A minha mulher é de História de Arte e passamos a vida nisso", explica, acrescentando que é esta vida que lhe permite chegar "todos os dias bem disposto à RTP". "E apesar da complexidade do cargo, chego todos os dias bem disposto a casa. Não acumulo cargas negativas."
É um homem de direita - "de centro-direita, vá", corrige. "Acredito num certo progressismo, mas trabalho muito bem com a criatividade da esquerda", assegura. Foi deputado pelo PSD a convite de Durão Barroso e chegou a integrar a equipa de Santana Lopes em Lisboa. É mais reservado agora, na hora de falar de política. "Não me fica bem, sendo presidente da RTP, falar da situação política portuguesa. Mas digo-lhe já que convivo muito bem com a diversidade, até porque na administração da RTP já lidei com quatro ministros", diz, elogiando de forma aberta o atual, João Soares. "É um homem de cultura e de proximidade e temos tido reuniões muito proveitosas. Vê-se que foi autarca, gosta de ir aos sítios. Na primeira reunião foi ele que veio à RTP, porque queria ir lá, conhecer os cantos. Foi visitar os estúdios, os arquivos, a rádio. Estou completamente de acordo com a passagem da RTP para a tutela da Cultura. É um bom sinal, é um sinal do reconhecimento político do potencial da RTP como referência cultural do país".

Comedido na política caseira, expansivo na internacional. "Ando fascinado com as eleições americanas, com os candidatos fora do sistema e a reação do establishment." Gonçalo Reis não tem dúvidas: "A Hillary [Clinton] vai ganhar. E ainda bem." Até porque "Donald Trump é um horror". "Todos aqueles valores não são os nossos valores. Acho que a América acordou tarde para o tema Donald Trump. Mas o bom senso virá sempre ao de cima."

Ah, o bom senso. Só faltou no fim do almoço. Tinham de vir duas farófias para estragar tudo. Ótimas, por sinal. E já agora, os cafés. E a conta, por favor.

Bica do Sapato
› 2 couvert
› 1 naco de atum grelhado
› 1 lulas recheadas
› 2 Pedras Salgadas
› 1 Água do Luso
› 2 farófias
› 1 café
› 1 descafeinado
Total: 64,75 euros

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