Sons em Trânsito quer atrair público mais jovem ao festival
Música do mundo é o ADN do Sons em Trânsito. Começou assim em 2002 e será assim a partir desta segunda-feira, dia em que arranca o festival no Teatro Aveirense, com um encontro entre o ativista angolano Luaty Beirão e o músico Pedro Abrunhosa.
O alinhamento, que pela primeira vez terá um repetente e que traz a Portugal músicos do Mali e de Israel, da Mongólia e de Itália, da Etiópia, do Uruguai e de Portugal, quer rejuvenescer. "A sensação que tive o ano passado é que o público envelheceu, o que voltou foi o que já tinha estado, e acho que não conseguimos atrair as novas gerações. Esse é o desafio para este ano", explica o programador, Vasco Sacramento ao DN. A outra missão de 2017 foi procurar "exotismo" e "músicos de países com que as pessoas têm menos possibilidade contactar".
"O ano passado dedicámos muito a programação aos países lusófonos. Tivemos artistas do Brasil, dois de Angola e um de Cabo Verde e apesar de a edição ter sido fantástica e o nível artístico muito alto, eu senti que faltou algum exotismo", nota Sacramento, fundador da Sons em Trânsito, a promotora e agência de artistas que nasceu com o festival. A cobertura é ampla, basta ver o cartaz, "um cardápio global" nas palavras de Vasco Sacramento:
Segunda-feira, dia 20. "Pode uma canção fazer uma revolução?", a pergunta lança o tema da tertúlia que junta o ativista angolano Luaty Beirão e o músico português Pedro Abrunhosa a partir das 21.30. O jornalista João Gobern, colaborador do Diário de Notícias, é o moderador. A entrada está limitada aos cerca de 800 lugares de lotação do Teatro Aveirense e mediante apresentação de bilhete para um dos dias seguintes.
Quarta-feira, dia 22. Naturais da Mongólia, os Egschiglen, são uma banda de música folclore que usa instrumentos tradicionais. Existem desde 1991 e o seu (impronunciável) nome quer dizer "melodia harmoniosa". Tocam às 21.30. No mesmo dia, às 23.00, sobem ao palco do Teatro Aveirense a dupla The Touré-Raichel Collective, juntando o músico do Mali Vieux Farka Touré e o israelita Idan Raichel, um muçulmano e um judeu. Esta associação aconteceu após um encontro num terminal de aeroporto, em Berlim, em 2008, e já resultou no disco The Tel Aviv Session, lançado em 2012. "É um espetáculo que já vi na Grécia há uns três, quatro anos e que fiquei fascinado, muito elegante, muito sofisticado", segundo Vasco Sacramento.
Quinta-feira, dia 23. O italiano Vinicio Capossela repete presença no Sons em Trânsito (23.00). O cantautor, fortemente influenciado pelo norte-americano Tom Waits, tem reinterpretado a música tradicional italiana. "Tento sempre não repetir, num festival tão pequeno acho que não vale a pena estar a repetir, mas como este ano celebrávamos esta data redonda - 15 anos - achei bem ter um artista que tenha sido importante no percurso da Sons em Trânsito. "Gosto muito da música dele, gosto muito dele, gosto muito da persona artística dele", revela o programador sobre esta noite que abre com os sons do cubano Roberto Fonseca (21.30).
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Sexta-feira, dia 24. O músico Júlio Resende traz Portugal para o programa do Sons em Trânsito (21.30). O uruguaio Jorge Drexler canta a partir das 23.00. Para esta noite, Quico Cadaval foi convidado para trazer os contos para o festival. A sessão está marcada para as 00.15. Os portugueses Colorau Som Sistema fecham a noite (a partir das 00.45).
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Sábado, dia 25. Ivo Prata chama o público infantil ao festival de músicas com os seus contos infantis (10.30), o espanhol Quico Cadaval volta aos seus contos, a partir das 17.30, e a noite fica por conta dos brasileiros Liniker e os Caramelows, que também fazem parte do cartaz do Mexefest (e atuam na noite de sexta na estação do Rossio, em Lisboa). Às 23.00, há Mulatu Astatke (Etiópia), "outro concerto muito sofisticado", segundo o programador. "É um concerto que não é nada preguiçoso, não procura soluções fáceis". Os nacionais Ohxalá fecham a 8ª edição do Sons em Trânsito (00.00).
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Vasco Sacramento considera que este cartaz "tem a ver com o momento que o mundo atravessa, com a perda de algumas liberdades básicas, de algum crescimento de fenómenos totalitários. Nesse sentido, um festival de músicas do mundo tem especiais obrigações de combater esses fenómenos".
"Também nos cumpre ter um papel mais aventureiro, fomentar o espírito de aventura e descoberta e fazer refletir sobre o mundo que vivemos". Mas, admite, há zonas do mundo de que não existem músicos a circular. Síria, Iraque, Afeganistão são os exemplos que dá. "Há muitos artistas desses países, mas exilados". De facto, há muitas barreiras burocráticas, autorizações de viagem, até problemas de saúde pública com que nos deparámos no passado. "Já tivemos de cancelar o concerto com um artista durante o período mais crítico do ébola. O mundo não é igualmente livre para todos".
E será o mundo o mesmo lugar de fronteiras? O programador conta que na elaboração do cartaz se depararam com esta dúvida e que refletiu sobre o assunto. "Cada vez mais as coisas se misturam e definição de nação é mais ténue e discutível", começa. "A questão e que ainda precisamos dessas ferramentas para falar de artistas que ainda são desconhecidos para a esmagadora maiora das pessoas. É preciso contextualizar um bocadinho as coisas".
Essa necessidade fica clara quando Vasco fala do encontro em palco dos músicos que compõem a banda apresentada como The Touré-Raichel Collective. "O encontro entre o Idan Raichel e o Vieux Farka Touré não é apenas o encontro entre dois músicos extraordinários. Um homem que vem de um país quase exclusivamente judaico e um homem que vem de um país maioritariamente muçulmano. Isto tem uma leitura para lá de musical, [é] geopolítica, humanitária e às vezes as velhas designações ainda são precisas", afirma, em entrevista ao DN.
Uma canção pode fazer a revolução
Este ano, oitava edição da atribulada história do Sons em Trânsito, o festival abre em formato tertúlia, com Pedro Abrunhosa e o ativista angolano Luaty Beirão. A conversa acontece uma semana depois de terem sido conhecidas as destituições da Sonangol e da televisão pública de Angola de Isabel dos Santos e outros dois filhos do anterior presidente do país, José Eduardo dos Santos.
Vasco explica a razão do convite, a partir de um encontro em Lisboa. "Eu tive a sorte de almoçar com o Luaty há um ano e fiquei fascinado com a força, o carisma, o poder magnético que aquela figura tem". A conversa tem um tema - "Pode uma canção fazer uma revolução?" - e vem a propósito de o ativista terem uma importância que o programador compara à dos músicos. "O Luaty é um pequeno pedaço de história, uma história muito recente, de um tipo que passou das palavras aos atos, saiu do Facebook e foi para a vida real, arriscou a sua liberdade, a sua saúde, o seu corpo, a sua vida por uma causa em que acredita e isso é extremamente válido".
É mais um detalhe que aproxima o programa dessa reflexão sobre um mundo de perda de liberdades. "Fez sentido o formato do debate com este pano de fundo da importância que as canções podem ter, ou não, para criar uma revolução ou revoluções". "Talvez uma canção não possa fazer uma revolução no sentido clássico do termo, mas podem fazer pequenas revoluções, uma revolução interior em nós próprios, por vezes são absolutamente reveladoras", refere. "A música tem esse poder. A música e os músicos", acrescenta.
Os bilhetes para o festival custam 15 euros por dia e, no sábado, dia em que Vasco Sacramento conversou com o DN, sábado e sexta-feira, respetivamente, eram os dias com mais entradas vendidas.
Um festival de interrupções
O festival Sons em Trânsito nasceu em 2002, (ainda) no Centro Cultural e de Congressos de Aveiro. Mudou-se, no ano seguinte, para o recém-inaugurado Teatro Aveirense, onde cantou, em 2004, a cubana Omara Portuondo. A quarta edição aconteceu depois de terem vencido um programa de apoios que permitiu estender o festival a outras três cidades: Vila Real, Bragança e Vila Nova de Famalicão, além de Aveiro. Após as edições de 2006 e 2007, foram forçados a parar, "reflexo da crise". Regressou há um ano, repete este, mas sem continuidade assegurada.
Para o festival existir, Vasco Sacramento impõe três condições: "Um, depende da própria Sons em Trânsito querer e essa parte está garantida; depois da vontade política, do Teatro Aveirense e da câmara de Aveiro, que também me parece estar garantida; e das pessoas, se não acarinharem o festival não faz sentido ele continuar". É neste terceiro ponto que o público mais novo entra.
A estratégia é "apresentar o festival às pessoas que têm 17, 18, 20 e poucos anos". Gente que era criança quase de colo quando o Sons em Trânsito chegou à cidade. "Estamos a comunicar mais de perto com a Universidade de Aveiro, a Internet permite direcionar a comunicação para os grupos etários que nos interessam", comenta. "Nós somos para toda a gente, mas é importante rejuvenescer o festival", defende Vasco Sacramento.
"Em contrapartida, promete, a programação procurou não refletir essa preocupação em atrair pessoas mais jovens. "Não quis fazer cedências artísticas. Este não é um festival comercial. E hoje em dia é como uma celebração anual da Sons em Trânsito, é onde nos podemos dar ao luxo de ser intransigentes artisticamente". Podia apostar numa música mais globalizada. "Estamos a ficar iguais uns aos outros. Comemos as mesmas coisas, vemos as mesmas séries na televisão norte-americanos, os mesmos filmes e isso é uma coisa que me desagrada, porque acho que nos empobrece. A tendência até foi ser um bocadinho mais purista e esperar que as pessoas se apaixonem pela essência. Podíamos ter resultados melhores, mas não estaríamos a ser fiéis à nossa missão", afirma Vasco Sacramento com quem tudo começou há 15 anos, quando tinha 24 anos.
"Eu estudei Direito na Universidade Católica do Porto e assisti a um concerto do Goran Bregovic, em 1998, no Rivoli. Tinha acabado de ver o Underground e fiquei siderado, mas nunca mais pensei naquilo. Voltei à minha vida de estudante de Direito", começa por contar Vasco, natural de Aveiro, saltando dois anos no tempo. "Um dia vim de fim de semana e fui almoçar a casa da minha avó. Depois do almoço, fui até à aparelhagem onde tinha uns livros e uns CD e encontrei o programa desse concerto, que tinha, na ficha técnica, o nome da agente do Goran Bregovic. Disse: vou trazer o Goran Bregovic a Aveiro. Passado meia hora estava na Internet à procura do telefone. Liguei imediatamente e foi assim que tudo começou."
Este concerto foi o ponto de partida da produtora de espetáculos e agência de artistas Sons em Trânsito, atualmente nos bastidores da organização de cerca de 500 espetáculos anualmente. Perdeu-se um arquiteto, ganhou-se um programador, diz Vasco a quem a expressão "melómano desde pequenino" se pode aplicar sem erro ou ironia. "Eu sou filho de dois melómanos, tive um tio-avô que era filósofo e um dos músicos que acompanhava Zeca Afonso", conta. "A música esteve sempre muito presente, convivi desde muito pequenino com músicos em minha casa. Carlos do Carmo, Zeca Afonso, José Barata Moura... Eu era o rei do jardim de infância porque conhecia o José Barata Moura", ri-se Vasco Sacramento, que pôs de parte ser advogado para se dedicar à indústria da música e que, com a Sons em Trânsito, se prepara para assumir a programação do Capitólio, sala mítica da capital, sob tutela da EGEAC, empresa que gere os equipamentos culturais da câmara de Lisboa.
Concertos, cinema e humor no Capitólio em 2018
Com a gestão do histórico teatro do Parque Mayer, renasce para Vasco Sacramento a ideia de voltar a fazer um festival em duas cidades. "Para o fazermos teremos de alterar as datas do festival, porque coincide com o Mexefest que também utiliza o Capitólio, e ainda bem, esperemos que assim continue". A ideia existe, Vasco só impõe uma condição: "Quando fizemos nas outras cidades, senti que não entenderam o festival como seu e isso é muito importante para isto acontecer, porque nós pedimos ao público que nos passe um cheque em branco, já que a maioria não conhece os artistas. Vão ver. Tem de haver um contrato de segurança, e isso só se consegue se for um festival que acontece em duas cidades, com o mesmo grau de seriedade".
A equipa de trabalho da Sons em Trânsito, cerca de 20 pessoas repartidas entre Aveiro e Lisboa, "está a conhecer os cantos à casa" no Capitólio. "Tencionamos abrir com a nossa programação no final de janeiro, início de fevereiro, e nessa altura também tomaremos essa decisão de ter o Sons em Trânsito em Lisboa".
Três prioridades "bem definidas" estão na base da vitória da Sons em Trânsito na adjudicação da concessão de programação: música, humor e cinema. "A música terá um papel preponderante", antecipa. "É uma sala que está mais virada para a música". Continua: "O humor terá um papel importante, histórico, porque estamos no Parque Mayer, e depois porque o cineteatro tem como patrono a figura de Raul Solnado. "O cinema também fez muito parte da história do Capitólio e no terraço tem as condições ideais para se praticar".
Aberto a outros espetáculos, Vasco Sacramento garante que aquela "não será a sala da Sons em Trânsito", mas com "assinatura". "Temos de estar abertos ao interesse que toda a comunidade artística revele". A programação desta sala, com cerca de mil lugares, vai buscar inspiração a várias salas europeias que "têm um funcionamento multidisciplinar e elástico". Salas onde pode acontecer um concerto ao fim tarde, humor à noite e um DJ a partir da meia-noite. "Não sei se temos capacidade para fazer isso", admite, mas o que gostava era de "alargar a oferta musical da cidade através daquela sala". "Temos sentido muito interesse de agentes internacionais, porque percebem que há uma lacuna entre os bares de 300 ou 400 pessoas, demasiado pequenos, até ao Coliseu que tem 4 mil pessoas em pé". Finalmente, refere, gostaria que esta sala seja uma plataforma de apresentação de música portuguesa. E é com um artista português que quer arrancar a programação.