Sonhos e pesadelos de Veneza
No original, o Casanova de Fellini chama-se Il Casanova di Federico Fellini. Em boa verdade, desde o emblemático Roma (1972), a assinatura tornara-se inseparável da imagem pública do seu trabalho. Mas neste caso tal assinatura adquire um exemplar valor simbólico: criador de um universo atravessado e, mais do que isso, assombrado pelos enigmas das mulheres, Fellini confrontava-se, aqui, com as atribulações do mais lendário dos sedutores.
O filme possui, aliás, a dimensão de um gigantesco jogo de espelhos, congregando os temas nucleares do universo felliniano a partir da inspiração de A História da Minha Vida, autobiografia de Giacomo Casanova (1725-1798), aventureiro e sedutor dos tempos de glória da República de Veneza. Fellini interessa-se muito pouco pelos métodos correntes das chamadas "reconstituições" históricas (cinematográficas ou televisivas): a sua Veneza é uma paisagem delirante em que a crueza dos lugares se cruza com sonhos e pesadelos, num registo que é sempre, em última instância, interior e confessional.
Daí a tristeza imensa que percorre este Casanova (porventura explicando o seu sistemático esquecimento em muitas evocações da obra de Fellini): o herói é o campeão das conquistas amorosas, mas também o espectro do seu próprio desejo, coabitando com a nitidez fria e irrevogável da morte. Na composição de tal personagem, Donald Sutherland consegue uma das mais notáveis performances de toda a sua carreira.