"Somos vítimas do silêncio dos nossos pais e responsáveis pela ignorância dos nossos filhos"

O Parlamento espanhol aprovou em setembro a exumação dos restos mortais de Francisco Franco do Vale dos Caídos, planeando também localizar os desaparecidos enterrados em valas comuns por todo o país. Igreja espanhola informou o Governo que não permite acesso do Estado ao local onde o ditador está enterrado
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Felipe Gallardo fala como um esfomeado perante um banquete. Aos 91 anos, as palavras saem-lhe em torrente, olhos esbugalhados como se tivesse de novo 10 e assistisse, em tempo real, aos episódios que relata.

"Quando prenderam a minha mãe e o meu pai, transformaram a minha casa no quartel da Falange. Procurei abrigo por debaixo de umas ruínas e meti-me lá com a minha irmã, de cinco anos, e o meu irmão, de 18 meses," diz, ansioso por contar a sua história, a memória atrapalhando-o menos do que a respiração, que parece cortar-lhe o ritmo.

Felipe quer contar todos os detalhes, o que torna difícil segui-lo. A filha Purificación Gallardo León, 62 anos, ouve-o com paciência.

"Ele nunca quis falar, mas há uns anos começou a contar-me aquilo que viveu. Penso que calou tanto que agora tem necessidade de repetir e de contar muitas vezes. Todos os dias se lembra de coisas novas," diz, antes de resumir a história.

O pai de Felipe e avô de Purificación, Pedro Gallardo Escribano, foi um autarca Republicano da pequena aldeia de Valdetorres, perto de Badajoz, durante os anos da Segunda República espanhola. O filho e a neta insistem na sua fama de homem bondoso, que alargou o cemitério do povoado para enterrar os não religiosos e era conhecido como o "homem que matava a fome aos pobres". Depois da Guerra Civil, Pedro, que não esteve na frente de combate, considerou que não tinha por que se exilar, como outros familiares haviam feito. Ele e Feliciana, a mulher, foram detidos, separados dos filhos pequenos e um do outro, trocando informações por cartas que chegavam censuradas. Em 1940, Feliciana recebeu uma carta escrita por um amigo do marido. "O Pedro foi de viagem com Ana e Teresa". Ana e Teresa eram familiares que foram fuziladas em 1937. Feliciana leu nas entrelinhas a notícia da morte do companheiro. Pouco depois, quando foi libertada e voltou para junto dos filhos, nessa altura a viver com uma prima, não era a mesma pessoa.

"Não reconheci a minha mãe. Não tinha cabelo, parecia-me uma múmia, a cara muito cavada. Rejeitei-a, disse-lhe que não era a minha mãe," diz Felipe Gallardo sobre o momento em que viu a mãe depois de quatro anos de ausência.

Feliciana procurou o corpo do marido, mas Purificación diz que a avó foi ameaçada com o mesmo destino do marido. Então, calou publicamente a inquietação e morreu sem saber. O filho Felipe preferiu também não olhar para o passado. Emigrou com a mulher e os filhos para a Austrália e só regressou a Espanha depois da morte de Franco. Felipe celebrou o primeiro governo socialista, liderado por Felipe González, como havia celebrado a República em pequeno, diz. Nesse momento, compreendeu que "não era o tempo de tocar no tema dos desaparecidos" e aguardou. "Os anos passaram e vi que o PSOE não queria falar do assunto. Deixei de ter ilusões quanto a eles," diz.

Uma sondagem publicada em julho pelo jornal El Mundo mostrava que apenas 41% dos espanhóis concordava com a decisão de retirar Franco do Vale dos Caídos. No Parlamento, a a decisão de exumar o corpo do ditador foi aprovada em setembro com 172 votos a favor e 164 abstenções dos partidos de centro-direita, Partido Popular e Ciudadanos, e continua a dividir Espanha. Esta quinta-feira foi a vez da igreja espanhola se pronunciar.Santiago Cantera, prior do Vale dos Caídos, argumentou que não há consenso entre a família de Franco, que o processo ainda está envolto em processos judiciais e que por isso não autoriza qualquer intervenção no local. No El País, o Governo reagiu sem supresa, lembrando os "antecedentes ideológicos" de Santiago Cantera.

A sociedade espanhola nunca chegou a um consenso sobre os violentos anos da Guerra Civil e a ditadura de Franco, preferindo largamente não falar desse momento da História. Estima-se que cerca de 500 mil pessoas tenham sido mortas durante o conflito. Os historiadores dizem que os Nacionalistas, as forças de direita lideradas por Franco que acabaram por vencer o conflito, mataram 150 mil opositores já depois do fim da guerra, entre 1936 e 1939. Depois de Franco tomar o poder, mais 20 mil terão sido assassinados. Muitos desses corpos continuam desaparecidos. Mas os Republicanos também terão assassinado 49 mil pessoas.

O Vale dos Caídos foi mandado construir por Franco para homenagear as vítimas da Guerra Civil, mas é um local muito disputado politicamente. O monumento foi erigido recorrendo a mão de obra de prisioneiros Republicanos. Um deles foi o tio materno de Purificación Gallardo León. Estima-se que mais de 12 mil cadáveres Republicanos tenham sido removidos de valas comuns e enterrados naquele local. Além da decisão de remover Franco do Vale dos Caídos, o Governo de Sánchez quer também proceder à identificação dos cadáveres sepultados em valas por toda a Espanha.

Depois da morte de Franco, em 1975, a transição para a democracia assentou num pacto político que escolheu não fazer contas com o passado. Em 1977 foi aprovada uma lei de amnistia que proibiu a condenação de criminosos da guerra ou de oficiais franquistas. Mesmo depois da aprovação da Lei da Memória Histórica, em 2007, que condenou o regime Franquista e pediu a remoção de símbolos do Franquismo, alguns daqueles que procuram os restos mortais dos seus familiares desaparecidos continuaram a encontrar portas fechadas e desconforto e silêncio perante o tema.

"Tu que usas o computador, não podes ver se conseguimos encontrar o avô?"

O silêncio na família de Purificación durou até 2010, quando encontrou o nome do avô no livro de Francisco Espinosa, "A Coluna da morte". Seguindo os passos do historiador, Purificación chegou a dados do Registo Militar que lhe indicaram o local provável onde o avô tinha sido enterrado, juntamente com outras 13 pessoas. Viajou até Badajoz com todas as informações e solicitou um encontro com a autarca local. A neta de Pedro Gallardo Escribano sentiu que estava no bom caminho para encontrar os restos mortais do avô, mas esse sentimento não durou muito tempo.

"Quando disse a palavra exumar o caso mudou. Disseram-me que os dados não eram corretos, que o meu avô podia estar ali ou não... Ninguém quer tocar em nada," diz Purificación Gallardo León.

Emilio Silva, antigo jornalista que procura os restos mortais do avô e fundador da Associação para a Recuperação da Memória Histórica, tem uma explicação possível. "Muitas famílias ligadas ao Franco ganharam grande poder a nível local. É normal que nos meios pequenos não se queira falar disso," diz.

As associações que por toda a Espanha trabalham este tema desde o início dos anos 2000 já recuperaram os restos mortais de cerca de 8300 pessoas. A Associação de Emilio levou a cabo 150 exumações. Mas o antigo jornalista acusa a falta de recursos e "a falta de vontade política" dos Governos espanhóis que, diz, "nunca apoiaram publicamente as famílias das vítimas da ditadura". A intenção de Pedro Sánchez de proceder à identificação dos corpos nas valas comuns é, segundo Emilio Silva, "apenas uma intenção".

"Em cinco meses o Governo já podia ter procurado valas comuns, mas não fez nada. Dizem que há que esperar pelo Orçamento do próximo ano, mas o resgate do Aquarius também não estava contemplado pelo Orçamento. Se o Governo tivesse verdadeira vontade política para criar um plano nacional de busca dos desaparecidos, em quatro ou cinco anos teria o assunto resolvido," diz.

Depois do fracasso no terreno, Purificación decidiu juntar-se a Emilio Silva e a outros manifestantes que todas as quintas-feiras protestam contra a imunidade dos crimes do Franquismo na Portas do Sol, o centro emblemático de Madrid.

Foi aí que Purificación Gallardo León conheceu outra neta de um desaparecido, Purificación Fosa Valdecaballeros. Nos últimos oito anos, as duas tornaram-se amigas, encontrando-se quase todas as quintas-feiras no Sol, apoiando a luta uma da outra.

O pai de Purificación Fosa Valdecaballeros contou às filhas a história de família quando esta tinha 15 anos, apesar dos protestos da mãe, que insistia para que "não se falasse disso às meninas," diz Purificación. Em 2008, depois da aprovação da Lei da Memória Histórica, apercebeu-se de que alguns familiares recomeçaram a buscar os restos mortais dos seus desaparecidos, mas hesitou falar do assunto com o pai. Foi o pai que, durante um almoço de família, a chamou à parte e lhe disse: "Tu que usas o computador, não podes ver se conseguimos encontrar o avô?"

Purificación deu início à sua própria investigação e pensa ter localizado o corpo do avô, sem conseguir no entanto a autorização para fazer escavações no local, também na zona de Badajoz.

As duas amigas sentem por vezes que tomaram nas mãos uma tarefa para a qual ninguém quer olhar. Os seus pais estiveram em negação sobre o assunto durante muitos anos. Os seus filhos não se interessam pelo tema como elas. No entanto, ambas dizem não se sentir em paz até recuperarem os corpos dos seus avôs. Sentem-se responsáveis perante a família, mas sentem-se também responsáveis pela sociedade espanhola, dizem.

"Somos vítimas do silêncio dos nossos pais e responsáveis pela ignorância dos nossos filhos," diz Purificación Gallardo León.

Apesar de levarem quase dez anos de investigações, avanços e recuos e protestos semanais, as duas mulheres não pensaram ver chegar o dia em que um governo espanhol anunciasse a retirada do corpo do ditador.

"A transição neste país não foi bem feita. Chegou-se a um acordo e os assassinos não foram julgados. Agora chegámos a um ponto em que não podemos voltar atrás. A transição verdadeira começa agora," diz Purificación Gallardo León.

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